Neste nosso décimo nono comentário sobre Os Lusíadas, continuaremos a ler o segundo canto da obra, que Camões canta a visita de Vênus a Júpiter, onde ela pede para que ele proteja os portugueses durante a jornada deles rumo às terras do Oriente.

OS LUSÍADAS O PEDIDO DE VÊNUS JÚPITER
O pedido de Vênus a Júpiter

CANTO II – ESTROFE 33

 

Ouvindo-lhe estas palavras piedosas

A fermosa Dione, e comovida,

Dentre as ninfas se vai, que saudosas

Ficaram nesta súbita partida.

Já penetra as estrelas luminosas,

Já na terceira esfera recebia

Avante passa, e lá no sexto Céu,

Para onde estava o Padre se moveu.

 

“Ouvindo-lhe estas palavras piedosas a fermosa Dione, e comovida, dentre as ninfas se vai, que saudosas ficaram nesta súbita partida (1). Já penetra as estrelas luminosas, já na terceira esfera recebia avante passa, e lá no sexto Céu, para onde estava o Padre se moveu (2).”

(1) A formosa Vênus (Dione) fica comovida ao ouvir as piedosas palavras do capitão Vasco da Gama. Ela, que estava ao lado das ninfas nereidas após salvarem a frota lusitana, parte para os céus deixando-as com saudades após esta súbita partida.

(2) Voando pelos céus, ela atravessa as luminosas estrelas e, sendo recebia em sua morada no planeta Vênus (terceira morada), avança para o planeta Júpiter (sexto céu), que era a morada habitada por Júpiter¹.

 

“Ouvindo as piedosas palavras proferidas pelo capitão Gama, a fermosa Vênus fica comovida e parte para os céus, deixando saudosas as ninfas que ficaram para trás. Ela penetra nas estrelas luminosas, sendo recebida na terceira esfera, mas segue adiante até o sexto céu, que é morada de Júpiter.”

 

¹Ao se referir aos deuses, Camões usa a nomenclatura romana, esta que nomeava as suas divindades pagãs com os mesmo nomes dados os planetas (Vênus, Marte, Mercúrio, Júpiter, etc).

CANTO II – ESTROFE 34

 

E como ia afrontada do caminho,

Tão fermosa no gesto se mostrava,

Que as Estrelas, o Céu e o Ar vizinho,

E tudo quanto a via namorava.

Dos olhos, onde faz seu filho o ninho,

Uns espíritos vivos inspirava,

Com que os Polo gelados acendia,

E tornava do Fogo a Esfera fria.

 

“E como ia afrontada do caminho, tão fermosa no gesto se mostrava, que as Estrelas, o Céu e o Ar vizinho, e tudo quanto a via namorava (1). Dos olhos, onde faz seu filho o ninho, uns espíritos vivos inspirava, com que os Polo gelados acendia, e tornava do Fogo a Esfera fria (2).”

(1) Seguindo seu caminho com pressa e se mostrando tão formosa, Vênus conseguia inspirar o amor das Estrelas, do Céu, do Ar Vizinho e tudo o mais por onde passava.

(2) Em seus belos olhos, local onde seu filho Cúpido faz ninho, ela inspirava os espíritos vivos, incendiando os gelados polos e tornando em fogo a fria Lua (Esfera fria).

 

“Conforme ia com pressa, Vênus, por ter gestos tão fermosos, conseguia inspirar o amor das Estrelas, do Céu, do Ar vizinho e tudo o mais que a via. Seus olhos, onde seu filho Cúpido faz o ninho, inspirava uns espíritos vivos, sendo capaz de acender os gelados polos e até mesmo tornar a fria Lua em fogo.”

CANTO II – ESTROFE 35

 

E por mais namorar o soberano

Padre, de quem foi sempre amada e cara,

Se lhe apresenta assi como ao troiano,

Na selva ideia, já se apresentara.

Se a vira o caçador, que o vulto humano

Perdeu, vendo Diana na água clara,

Nunca os famintos galgos o mataram,

Que primeiro desejos os acabaram.

 

“E por mais namorar o soberano Padre, de quem foi sempre amada e cara, se lhe apresenta assi como ao troiano, na selva ideia, já se apresentara (1). Se a vira o caçador, que o vulto humano perdeu, vendo Diana na água clara, nunca os famintos galgos o mataram, que primeiro desejos os acabaram (2).”

(1) E para que conseguisse atrair o afeto do soberano Júpiter, este de quem ela sempre foi amada e benquista, Vênus apresenta-se tão bela quanto da vez que se apresentou ao príncipe Páris¹.

(2) Se Actéon, aquele caçador que foi morto por seus cães como castigo por ver a deusa Diana tomando banho², visse Vênus neste estado, os seus cães (galgos) famintos não teriam tempo de o matar, pois o desejo que surgiria ao ver Vênus o consumiria antes.

 

“Querendo atrair o afeto do poderoso Júpiter de quem sempre foi amada e cara, Venus se apresentou tão formosa quanto se apresentou para o troiano Páris. Se Actéon a visse como viu Diana, não seria morto por seus galgos, já que o desejo o mataria primeiro.”

 

¹ Segundo a mitologia, durante o casamento do rei Peleu, a deusa Discórdia diz que um pomo deveria ser entregue a deusa mais bela do Olimpo, criando, assim, uma disputa entre Vênus, Juno e Minerva. Para resolve essa confusão, Júpiter determinou que o Páris, príncipe de Tróia, escolhesse qual das três era a mais bela. Vênus, querendo ser escolhida, se apareceu para ele e o seduziu. 

²Actéon, na mitologia, foi um caçador que, ao ver a deusa Diana banhar-se, foi transformado em veado e atacado e morto por seus próprios galgos (cães de caça).

CANTO II – ESTROFE 36

 

Os crespos fios de ouro se esparziam

Pelo colo, que a neve escurecia;

Andando, as lácteas tetas lhe tremiam,

Com quem o Amor brincava, e não se via;

Da alva petrina flamas lhe saíam,

Onde o Menino as almas acendiam.

Pelas lisas colunas lhe trepavam

Desejos, que como hera se enrolavam.

 

“Os crespos fios de ouro se esparziam pelo colo, que a neve escurecia; andando, as lácteas tetas lhe tremiam, com quem o Amor brincava, e não se via (1); da alva petrina flamas lhe saíam, onde o Menino as almas acendiam. Pelas lisas colunas lhe trepavam desejos, que como hera se enrolavam (2).”

(1) Vênus se mostrava bela, com os seus cabelos loiros caindo pelos ombros, ombros estes que eram mais brancos do que a neve. Quando ela andava, seus seios tremiam, sendo que ali o seu filho Cúpido brincava invisível (não se via).

(2) Dos peitos também saiam as chamas que o Cupido apaixonava as pessoas (acendia as almas) e de suas lisas pernas saiam os desejos que se enrolavam como heras.

 

“Os cabelos de fios de ouro caiam pelos seus ombros, estes tão brancos que até a neve escurecia. Quando andava, tremiam os peitos que seu filho Cúpido brincava sem ser visto, sendo que deles saíam as chamas que o Cúpido acendia as almas. Suas lisas pernas eram como colunas, na qual os desejos lhe trepavam como heras que se enrolam nas árvores.”

CANTO II – ESTROFE 37

 

C’um delgado cendal as partes cobre,

De quem vergonha é natural reparo,

Porém nem tudo esconde, nem descobre,

O véu, dos roxos lírios pouco avaro;

Mas, para que o desejo acenda e dobre,

Lhe põe diante aquele objeto raro.

Já sentem no Céu, por toda a parte,

Ciúmes em Vulcano, amor em Marte.

 

“C’um delgado cendal as partes cobre, de quem vergonha é natural reparo, porém nem tudo esconde, nem descobre, o véu, dos roxos lírios pouco avaro (1); mas, para que o desejo acenda e dobre, lhe põe diante aquele objeto raro. Já sentem no Céu, por toda a parte, ciúmes em Vulcano, amor em Marte (2).”

(1) Embora sempre se apresente nua, Vênus tampa suas partes com um véu de cor de cobre transparente, embora este véu não mostrando e nem cobrindo tudo ali.

(2) Faz isso não para se preservar, mas para que a curiosidade acenda o desejo de Júpiter. Ao fazer isso, todo o céu sente o ciúme de Vulcano, seu marido, assim como sente o amor de Marte, seu amante. 

 

“Vênus coloca um véu transparente para cobrir as suas vergonhas, embora ele seja generoso, não cobrindo e nem revelando tudo para acender e dobrar o desejo de Júpiter. Por todo o céu já percorre o ciúme de Vulcano e também o amor de Marte.”

CANTO II – ESTROFE 38

 

E mostrando o angélico semblante

C’o riso uma tristeza misturada,

Como dama que foi do incauto amante

Em brincos amorosos mal tratada,

Que se aqueixa e se ri num mesmo instante,

E se torna entre alegre e magoada,

Destarte a deusa, a quem nenhuma iguala,

Mas mimosa que triste ao Padre fala:

 

“E mostrando o angélico semblante c’o riso uma tristeza misturada – como dama que foi do incauto amante em brincos amorosos mal tratada, que se aqueixa e se ri num mesmo instante, e se torna entre alegre e magoada, destarte a deusa, a quem nenhuma iguala, mas mimosa que triste ao Padre fala (1):”

(1) Querendo manipula-lo, ela se apresenta com um aspecto angelical e triste – semelhante a uma dama que foi maltratada por seu amante e, ora alegre ora magoada, se queixa e ao mesmo tempo ri. 

(2) É assim que Vênus, a deusa que a beleza nenhuma outra iguala, se apresenta a Júpiter falando de uma forma mais mimada do que triste.

 

“Vênus, mais bela que qualquer outra deusa, mostra em seu angélico rosto um riso misturado com tristeza – como de uma dama que foi mal tratada pelo amante e passa a mostrar-se alegre e magoada – fala a Júpiter:”

CANTO II – ESTROFE 39

 

Sempre eu cuidei, ó Padre poderoso,

Que, para as cousas que eu do peito amasse,

Te achaste brando, afábil e amoroso,

Posto que a algum contrário lhe pesasse;

Mas, pois que contra mi te vejo iroso,

Sem que to merecesse nem te errasse,

Faça-se como Baco determina;

Assentarei enfim que eu fui mofina.

 

“Sempre eu cuidei, ó Padre poderoso, que, para as cousas que eu do peito amasse, te achaste brando, afábil e amoroso, posto que a algum contrário lhe pesasse (1); mas, pois que contra mi te vejo iroso, sem que to merecesse nem te errasse, faça-se como Baco determina; assentarei enfim que eu fui mofina (2).”

(1) Diz que sempre imaginou que ele (padre poderoso) seria brando, afável e amoroso com as coisas que ela ama, mesmo que alguma coisa lhe pesasse.

(2) Mas, como vê que Júpiter tem raiva dela, embora não mereça e nem tivesse feito nada errado, Vênus diz para ele realizar logo o desejo de Baco (destruir os portugueses), pois ela aceitará que foi infeliz.  

 

“Ó Pai poderoso, eu sempre imaginei seria brando, afável e amoroso em relação as coisas que eu amo de coração, mesmo que ainda lhe pesasse. Porém, como contra mim demonstra uma raiva que eu fiz nada para merecer e nem nada ofensivo, que se faça como Baco deseja e destrua-se logo os lusíadas, pois eu, enfim, assentarei que fui mofina.”

CANTO II – ESTROFE 40

 

“Este povo que é meu, por quem derramo

As lágrimas que em vão caídas vejo,

Que assaz de mal lhe quero, pois que o amo,

Sendo tu tanto contra meu desejo!

Por ele ti rogando choro e bramo,

E contra minha dita enfim pelejo.

Ora pois, porque amo é mal tratado,

Quero-lhe querer mal, será guardado.

 

“Este povo que é meu, por quem derramo as lágrimas que em vão caídas vejo, que assaz de mal lhe quero, pois que o amo, sendo tu tanto contra meu desejo! Por ele ti rogando choro e bramo, e contra minha dita enfim pelejo. Ora pois, porque amo é mal tratado, quero-lhe querer mal, será guardado (1).”

(1) Por querer o bem deles, diz que chora e derrama lágrimas ao saber que os portugueses sofrem. Mas, como Júpiter é contra ela, agora ela diz passará a desejar o mal deles.

(2) Indo contra a sua vontade, diz que vai odiá-los, pois como Júpiter quer o oposto de Vênus, assim ele passará a protegê-los.  

 

“Por este povo que derramo minhas lágrimas, vejo que trago apenas o mal, já que, sendo tu contra o meu amor por eles, deixa-os sofrer. Então rogo a ti chorando e gritando que, contra a minha vontade, agora passo a odiá-los, para que assim você queira defende-los.

CANTO II – ESTROFE 41

 

Mas moura enfim nas mãos das brutas gentes,

Que pois eu fui…” E nisto, de mimosa,

O rosto banha em lágrimas ardentes,

Como c’o orvalho fica a fresca rosa.

Calada um pouco, como se entre os dentes

Se lhe impedira a fala piedosa,

Torna a segui-la; e indo por diante,

Lhe atalha o poderoso e grão Tonante.

 

“Mas moura enfim nas mãos das brutas gentes, que pois eu fui…” E nisto, de mimosa, o rosto banha em lágrimas ardentes, como c’o orvalho fica a fresca rosa (1). Calada um pouco, como se entre os dentes se lhe impedira a fala piedosa, torna a segui-la; e indo por diante, lhe atalha o poderoso e grão Tonante (2).”

(1) Vênus tenta terminar seu discurso dizendo que os portugueses morram logo nas mãos dos mouros (bruta gente), mas acaba caindo em prantos e chorando. Mesmo chorando, ainda se mostra muito bela, com suas lágrimas parecendo o orvalho que banha uma linda rosa.

(2) Ao calar-se um pouco, como se os dentes de sua boca segurassem a sua fala, o grande e poderoso Júpiter (Tonante¹) toma a palavra.

 

“Mas que enfim morram os portugueses pelas mãos brutas dos mouros, pois eu…” E nisto Vênus é tomada por suas lágrimas, ficando tão bela quanto uma rosa coberta pelo orvalho. Quando fica calada, como se seus dentes segurassem sua voz, o poderoso e grande Júpiter toma a palavra.”

 

¹Tonante significa trovejador, sendo está uma designação dada a Júpiter, já que ele tem a capacidade de criar tempestades e utiliza um raio como arma.

 

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Esses foram os nossos comentários sobre trigésima terceira até a quadragésima primeira estrofe do segundo canto de Os Lusíadas, que Camões canta a visita de Vênus a Júpiter, onde ela pede para que ele proteja os portugueses durante a jornada deles rumo às terras do Oriente.

Eu sou Caio Motta e convido você a continuar acompanhando os nossos comentários sobre a grande obra de Camões, bem como demais textos da grande literatura universal presentes no nosso blog.

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