Neste nosso vigésimo quarto comentário sobre Os Lusíadas, terminaremos de ler o segundo canto da obra, onde Camões canta o encontro do rei de Melinde com o capitão Vasco da Gama e o desejo do monarca de conhecer mais sobre Portugal.

CANTO II – ESTROFE 92
Mas já o céu inquieto revolvendo,
As gentes incitava a seu trabalho,
E, já a mãe de Menon a luz trazendo,
Ao sono longo punha certo atalho;
Iam-se as sombras lentas desfazendo,
Sobre as flores da terra em frio orvalho,
Quando o rei melindano se embarcava
A ver a frota, que no mar estava.
“Mas já o céu inquieto revolvendo, as gentes incitava a seu trabalho, e, já a mãe de Menon a luz trazendo, ao sono longo punha certo atalho (1); iam-se as sombras lentas desfazendo, sobre as flores da terra em frio orvalho, quando o rei melindano se embarcava a ver a frota, que no mar estava (2).”
(1) Então amanhecia em Melinde, com o céu da noite virando dia e a Aurora (mãe de Menon¹) trazendo a luz que dava um fim ao sono dos homens ao lembra-los que precisavam trabalhar.
(2) Conforme amanhecia, as sombras iam lentamente se desfazendo sobre as flores da terra num frio orvalho. Neste momento, o rei de Melinde cumpria a promessa que tinha feito no dia anterior ao embaixador português, indo pessoalmente para ver a frota lusitana que estava no mar.
“Encerra-se a noite sobre Melinde, com o céu do dia voltando a aparecer e com Aurora mais uma vez trazendo a luz que encerrava o sono dos homens e lembra as pessoas que elas devem voltar ao trabalho. Enquanto as sombras da noite se desfaziam em frio orvalho sobre as flores, o rei Melinde embarcava rumo as naus portuguesas, a fim de finalmente conhecer o capitão Vasco da Gama.”
¹Mãe de Menon é Aurora, deusa que representa o amanhecer.
CANTO II – ESTROFE 93
Viam-se em derredor ferver as praias,
Da gente, que a ver só concorre leda;
Luzem da fina púrpura as cabaias,
Lustram os panos da tecida seda;
Em lugar de guerreiras azagaias
E do arco, que os cornos arremeda
Da Lua, trazem ramos de palmeira,
Dos que vencem, coroa verdadeira.
“Viam-se em derredor ferver as praias, da gente, que a ver só concorre leda; luzem da fina púrpura as cabaias, lustram os panos da tecida seda; em lugar de guerreiras azagaias e do arco, que os cornos arremeda da Lua, trazem ramos de palmeira, dos que vencem, coroa verdadeira.”
(1) O povo de Melinde, estando ansioso com a chegada destes distantes visitantes, ficava em fervor nas praias vendo a embarcação do rei de Melinde navegando até as naus portuguesas.
(2) O monarca vinha com uma comitiva que vestia cabaias de cor púrpura brilhantes e tecidos de seda que também eram brilhantes. Em vez de trazer as azagaias e os arcos que utilizavam em guerra, os mouros carregavam ramos de palmeiras, estes que sãos as verdadeiras coroas dos vencedores¹.
“A população de Melinde estava fervorosa com a ida do rei até as naus portuguesas. A comitiva do monarca trajava finas cabaias púrpuras, com lustrosos tecidos de seda e, no lugar de azagaias e arcos, carregavam ramos de palmeiras, estes que simbolizavam a verdadeira coroa da vitória.”
¹As ramas da palmeira eram utilizadas para simbolizar a vitória em combate.
CANTO II – ESTROFE 94
Um batel grande e largo, que toldado
Vinha de sedas de diversas cores,
Traz o rei de Melinde, acompanhado
De nobres de seu reino e de senhores:
Vem de ricos vestidos adornados,
Segundo seus costumes e primores;
Na cabeça uma fota guarnecida
De ouro, e de seda e de algodão tecida.
“Um batel grande e largo, que toldado vinha de sedas de diversas cores, traz o rei de Melinde, acompanhado de nobres de seu reino e de senhores (1): vem de ricos vestidos adornados, segundo seus costumes e primores; na cabeça uma fota guarnecida de ouro, e de seda e de algodão tecida (2).”
(1) Num bote (batel) que era grande, largo e coberto com sedas de cores variadas, vinha o rei de Melinde junto com a comitiva de nobres e senhores do seu reino.
(2) Os mouros da comitiva vinham trajados conforme era costume do seu povo, onde se adornavam de ricos vestidos e usavam na cabeça uma touca de ouro tecida em algodão e seda.
“Estando num grande e largo bote coberto com seda, o rei vinha acompanhado de nobres e senhores de Melinde. Trajavam ricos vestidos adornados e uma touca de ouro tecida de seda e algodão, sendo esses trajes comuns para os seus costumes árabes.”
CANTO II – ESTROFE 95
Cabaia de Damasco rico e dino,
Da tíria cor, entre eles estimada;
Um colar ao pescoço, de ouro fino,
Onde a matéria da obra é superada;
C’um resplandor reluze adamantino,
Na cinta, a rica adaga bem lavrada;
Nas alparcas dos pés, em fim de tudo,
Cobrem ouro e aljôfar ao veludo.
“Cabaia de Damasco rico e dino, da tíria cor, entre eles estimada; um colar ao pescoço, de ouro fino, onde a matéria da obra é superada (1); c’um resplandor reluze adamantino, na cinta, a rica adaga bem lavrada; nas alparcas dos pés, em fim de tudo, cobrem ouro e aljôfar ao veludo (2).”
(1) O rei de Melinde vestia uma cabaia confeccionada na cor vermelha, esta que era uma cor muito estimada pelos mouros; carregava um colar de ouro fino no pescoço, cuja o conjunto da obra valia muito mais do que os seus materiais¹;
(2) Na cintura ele trazia uma adaga com algumas escrituras e que era adornada com diamantes reluzentes; nos seus pés tinham sandálias cobertas de ouro pérolas.
“O monarca vinha vestindo uma cabaia digna de um rei, confeccionada na cor vermelha que, entre os mouros, é muita estimada; carregava um colar de ouro fino, cuja a obra superava em muito o valor de seus materiais; na sua cinta trazia uma adaga com escrituras, que reluzia os diamantes com esplender; as sandálias dos pés eram de veludo coberto de ouro e pequenas pérolas.”
¹Cabaia é um tipo de vestimenta utilizada pelos mouros; Tíria é como chamavam a cor vermelha, já que Tiro era uma cidade onde a tinta era fabricada; Aljôfar é uma pérola pequena.
CANTO II – ESTROFE 96
Com um redondo amparo alto de seda,
Numa alta e dourada hástia enxerido,
Um ministro à solar quentura veda,
Que não ofenda ou queime o rei subido.
Música traz a proa, estranha e leda,
De áspero som, horríssono ao ouvido,
De trompas arcadas em redondo,
Que, sem concerto, fazem rudo estrondo.
“Com um redondo amparo alto de seda, numa alta e dourada hástia enxerido, um ministro à solar quentura veda, que não ofenda ou queime o rei subido (1). Música traz a proa, estranha e leda, de áspero som, horríssono ao ouvido, de trompas arcadas em redondo, que, sem concerto, fazem rudo estrondo (2).”
(1) No grande bote, um dos ministros do rei vem segurando um redondo e alto amparo de seda numa alta e dourada hastes, aparato este que segurava para não deixar que o Sol queimasse o monarca africano.
(2) Na proa da embarcação estavam mouros tocando uma música estranha e alegre, sendo que sopravam trombetas com um som áspero, estridente e sem harmonia.
Na grande canoa, um dos ministros do rei vem segurando um redondo e alto amparo de seda numa alta e dourada haste, a fim de evitar que o sol queime o monarca. Na proa da embarcação é tocada uma estranha e alegre música, esta que era tocada por trombetas que produziam um som áspero, estridente e sem harmonia.
CANTO II – ESTROFE 97
Não menos guarnecido o lusitano,
Nos seus batéis, da frota se partia,
A receber no mar o melindano,
Com lustrosa e honrada companhia.
Vestido o Gama vem ao modo hispano,
Mas francesa era a roupa que vestia,
De cetim de adriática Veneza
Carmesi, cor que a gente tanto preza.
“Não menos guarnecido o lusitano, nos seus batéis, da frota se partia, a receber no mar o melindano, com lustrosa e honrada companhia (1). Vestido o Gama vem ao modo hispano, mas francesa era a roupa que vestia, de cetim de adriática Veneza Carmesi, cor que a gente tanto preza (2).”
(1) Não querendo esperar até que o rei de Melinde chegue às naus portuguesas, Vasco da Gama vai num bote receber o monarca africano no meio do caminho, sendo que o capitão português vai acompanhado de uma ilustre e honrada companhia.
(2) Apesar de se vestir de modo hispânico, Vasco da Gama vai trajando roupas francesas feitas do cetim da adriática Veneza na cor vermelha, a cor que os mouros tanto prezam.
“O capitão lusitano, acompanhado de uma honrada comitiva, parte com seus botes para receber o rei de Melinde e sua comitiva ainda no mar. Não menos paramentado que o rei, Vasco da Gama se veste de modo hispânico, embora esteja utilizando roupas francesas feitas de cetim de Veneza na cor vermelha, esta que é uma cor que eles muito prezam.”
CANTO II – ESTROFE 98
De botões douro as mangas vêm tomadas,
Onde o sol reluzindo a vista cega;
As calças soldadescas recamadas
Do metal, que Fortuna a tantos nega;
E com pontas do mesmo modo delicadas
Os golpes do gibão ajunta e achega;
Ao itálico modo a áurea espada;
Pruma na gorra, um pouco declinada.
“De botões douro as mangas vêm tomadas, onde o sol reluzindo a vista cega; as calças soldadescas recamadas do metal, que Fortuna a tantos nega; e com pontas do mesmo modo delicadas os golpes do gibão ajunta e achega; ao itálico modo a áurea espada; pruma na gorra, um pouco declinada (1).”
(1) As vestes que Vasco da Gama usa tem mangas com botões de ouro, onde a luz do Sol reluze e cega a todos; usa calças de soldados feitas de ouro, o metal que a sorte (boa Fortuna) a todos nega; seu gibão também vem preso com fitas que são feitas de ouro; em sua cintura traz uma espada dourada em estilo itálico e veste na cabeça uma pluma de gorra.
“O capitão Vasco da Gama veste mangas tomadas de botões de ouro, onde a luz do Sol reluz e cega a todos; usa as calças de soldados de ouro, a quem a boa Fortuna a tantos nega; e, com fitas que também são de ouro, prende e junta o seu gibão; traz uma áurea espada em estilo itálico e pluma de gorra um pouco inclinada na cabeça.”
CANTO II – ESTROFE 99
Nos de companhia se mostrava
Da tinta, que da múrice excelente,
A vária cor, que dos olhos alegrava,
E a maneira do trajo diferente.
Tal o fermoso esmalte se notava
Dos vestidos, olhados juntamente,
Qual aparece o arco rutilante
Da bela ninfa, filha de Taumante.
“Nos de companhia se mostrava da tinta, que da múrice excelente, a vária cor, que dos olhos alegrava, e a maneira do trajo diferente. Tal o fermoso esmalte se notava dos vestidos, olhados juntamente, qual aparece o arco rutilante da bela ninfa, filha de Taumante (1).”
(1) Os membros da companhia portuguesa se vestem com cores púrpuras (múrice) de vários tons, sendo está a cor que impressionava os olhos e diferenciava os seus trajes. Também se viam outras cores em suas vestes que, se observadas num conjunto, pareciam um arco-íris¹.
“A comitiva que acompanha o capitão Vasco da Gama utilizava vários tons de púrpura, diferenciando seus trajes com a cor que alegrava os olhos. Seus trajes, ao serem vistos em conjunto, mostravam uma variedade de cores, assim como o arco de Íris, filha de Taumante.”
¹ Íris, a ninfa filha de Taumante, é quem dá o nome ao arco-íris (Arco de Íris).
CANTO II – ESTROFE 100
Sonorosas trombetas incitavam
Os ânimos alegres, ressoando;
Dos mouros os batéis o mar coalhavam,
Os toldos pelas águas arrojando;
As bombardas horríssonas bramavam,
Com as nuvens de fumo ao sol tomando;
Amiúdam-se os brados acendidos,
Tapam com as mãos os mouros os ouvidos.
“Sonorosas trombetas incitavam os ânimos alegres, ressoando; dos mouros os batéis o mar coalhavam, os toldos pelas águas arrojando (1); as bombardas horríssonas bramavam, com as nuvens de fumo ao sol tomando; amiúdam-se os brados acendidos, tapam com as mãos os mouros os ouvidos (1).”
(1) Os portugueses tocam trombetas para elevar o ânimo de todos e receber o monarca africano; os botes que mouros vinham sacudiam na água;
(2) As bombardas das naus ativaram para saudar a chegada do monarca, espalhando nuvens de pólvora contra o Sol e fazendo os mouros taparem seus ouvidos com as mãos.
“A trombetas dos portugueses ressoavam, incitando os ânimos alegres; as canoas dos mouros sacudiam o mar, jogando águas nos toldos; as barulhentas bombardas atiravam, espalhando nuvens de fumo contra o sol, obrigando os mouros a taparem seus ouvidos com as mãos.”
CANTO II – ESTROFE 101
Já no batel entrou do capitão
O rei, que nos seus braços levava;
Ele c’a cortesia, que a razão
(Por ser rei) requeria, lhe falava.
C’umas mostras de espanto e admiração,
O mouro o gesto e modo lhe notava,
Como quem em mui grande estima tinha
Gente que de tão longe à Índia vinha.
“Já no batel entrou do capitão o rei, que nos seus braços levava; ele c’a cortesia, que a razão(Por ser rei) requeria, lhe falava. C’umas mostras de espanto e admiração, o mouro o gesto e modo lhe notava, como quem em mui grande estima tinha gente que de tão longe à Índia vinha.”
(1) Quando finalmente se encontram, o rei de Melinde pula no bote de Vasco da Gama e o abraça. Como já era de se esperar, o monarca fala com ele sendo muito cortês.
(2) Com um aspecto de espanto e admiração, o rei de Melinde contempla os trajes e o porte do capitão Vasco da Gama e mostra que tem muito apreço por este povo que, vindo de tão longe, pretende chegar às terras da Índia.
“O rei entrou na canoa do capitão Vasco da Gama abraçando o português e, com os modos que se espera de um monarca, se mostrava cortês. Com muito espanto e admiração, o mouro observava seu gesto e porte, mostrando uma grande estima pelo povo português que vem de tão longe para chegar às terras da Índia.”
CANTO II – ESTROFE 102
E com grandes palavras lhe oferece
Tudo o que de seus reinos lhe cumprisse,
E que, se mantimentos lhe falece,
Como se próprio fosse, lhe pedisse.
Diz-lhe mais, que por fama bem conhece
A gente lusitana; sem que a visse,
Que já ouviu dizer, que noutra terra
Com gente de sua lei tivesse guerra.
“E com grandes palavras lhe oferece tudo o que de seus reinos lhe cumprisse, e que, se mantimentos lhe falece, como se próprio fosse, lhe pedisse (1). Diz-lhe mais, que por fama bem conhece a gente lusitana; sem que a visse, que já ouviu dizer, que noutra terra com gente de sua lei tivesse guerra (2).”
(1) Falando com muita generosidade, o rei de Melinde oferece tudo o que se reino tiver a dispor para os visitantes, sendo que eles podem requisitar mantimentos como se estes fossem deles.
(2) Comenta que já conhece o famoso nome do povo lusitano, embora nunca tivesse, até então, visto este povo que é tão conhecido por guerrear contra os muçulmanos de outros lugares (sua lei tivesse guerra).
“Mostrando toda a sua generosidade, o rei de Melinde diz que os recursos do seu reino estão à disposição dos portugueses e, se precisarem de mantimentos, que peçam como se já fossem deles. Além disso, menciona que, embora ainda não os tenha conhecido, já ouviu falar do famoso povo lusitano, uma vez que eles já guerrearam contra outros membros da sua religião em outros lugares.”
CANTO II – ESTROFE 103
E como por toda África se soa,
Lhe diz, os grandes feitos que fizeram,
Quando nela ganharam a coroa
Do reino, onde as Hespéridas viveram;
E com muitas palavras apregoa
O menos que os de Luso mereceram,
E o mais que pela fama o rei sabia.
Mas desta sorte o Gama respondia:
“E como por toda África se soa, lhe diz, os grandes feitos que fizeram, quando nela ganharam a coroa do reino, onde as Hespéridas viveram (1); e com muitas palavras apregoa o menos que os de Luso mereceram, e o mais que pela fama o rei sabia. Mas desta sorte o Gama respondia (2).”
(1) Também diz que os feitos portugueses percorrem por toda África, sendo famosas as suas vitórias no reino da Mauritânia, o país que vivem as Hespéridas.
(2) O rei de Melinde, com estas palavras gentis, louva os feitos dos portugueses (os de Luso). Ao ouvir isto, o capitão Vasco da Gama lhe responde [a resposta começa na próxima estrofe].
“E diz o rei que os portugueses são conhecidos em toda África por causa de seus grandes feitos, vide quando eles conquistaram a coroa do reino Mauritano, onde viveram as Hespéridas. E assim o rei elogia os feitos lusitanos, embora esses sejam os menos importantes. Mas lhe responde o capitão Vasco da Gama:”
¹Hespéridas são, na mitologia, filhas de Héspero, rei que tinha como território a região da Mauritânia (região que hoje corresponde aos territórios do Marrocos e da Argélia).
CANTO II – ESTROFE 104
“Ó tu, que só tiveste piedade,
Rei benigno, da gente lusitana,
Que com tanta miséria e adversidade
Dos mares experimenta a fúria insana;
Aquela alta e divina Eternidade,
Que o Céu resolve e rege a gente humana,
Pois que ti tais obras recebemos,
Te pague o que nós outros não podemos.
“Ó tu, que só tiveste piedade, rei benigno, da gente lusitana, que com tanta miséria e adversidade dos mares experimenta a fúria insana (1); aquela alta e divina Eternidade, que o Céu resolve e rege a gente humana, pois que ti tais obras recebemos, te pague o que nós outros não podemos (2).”
(1) Agradecendo as gentis palavras do rei de Melinde, Vasco da Gama responde dizendo que o monarca é muito bondoso, sendo ele o único que teve piedade destes marinheiros portugueses que só vem sofrendo nestes mares.
(2) Como ele e os seus marinheiros são tão bem recebidos em Melinde, roga para que Deus, a Alta e Divina Eternidade que governa os céus e os homens, lhe pague por esta ajuda que os portugueses não podem retribuir.
“Ó tu, bondoso rei, o único que teve piedade desta gente lusitana que até agora só tem sofrido misérias e adversidades navegando nestes mares furiosos; como nós recebemos de ti tão boas obras, rogamos à Alta e Divina Eternidade, esta que faz o céu girar e que governa a gente humana, para que te pague o que nós agora não podemos.”
CANTO II – ESTROFE 105
“Tu, só de todos quanto queima Apolo,
Nos recebes em paz, do mar profundo;
Em ti dos ventos hórridos de Eolo
Refúgio achamos bom, fido e jocundo.
Enquanto apascentar o largo Polo
As estrelas, e o sol der lume ao mundo,
Onde quer que eu viver, com fama e glória
Viverão teus louvores em memória.”
“Tu, só de todos quanto queima Apolo, nos recebes em paz, do mar profundo; em ti dos ventos hórridos de Eolo refúgio achamos bom, fido e jocundo (1). Enquanto apascentar o largo Polo as estrelas, e o sol der lume ao mundo, onde quer que eu viver, com fama e glória viverão teus louvores em memória (2).”
(1) Diz que o rei de Melinde, dentre todos os mouros (povo queimado por Apolo¹), foi o único que recebeu os portugueses amigavelmente (em paz do mar profundo); foi no reino dele que a frota portuguesa acho refúgio contra as terríveis tempestades (Eolo²).
(2) Vasco da Gama diz que, enquanto o céu mostrar as estrelas e o Sol iluminar o mundo, ele louvará o bondoso e generoso rei de Melinde.
“Tu, bom rei, foi único dentre todos os mouros queimados pelo fogo de Apolo que nos recebeu em paz, dando-nos um refúgio seguro e confiável contra os horríveis ventos e tempestades. Digo que, enquanto o grande céu mostrar suas estrelas e o Sol iluminar a terra com seus raios, eu o louvarei por sua bondade e generosidade.”
¹Todos queimados por Apolo é uma referência ao mito que diz que Apolo, deus do Sol, teria queimado as terras africanas, sendo este o motivo de sua população ser negra;
²Eolo é a divindade que representa os ventos as tempestades.
CANTO II – ESTROFE 106
Isto dizendo, os barcos vão remando
Para a frota, que o mouro ver deseja;
Vão as naus uma e uma rodeando,
Porque de todas tudo note e veja.
Mas para o céu Vulcano fuzilando,
A frota c’oas bombardas o festeja,
E as trombetas canoras lhe tangiam;
C’osanafis os mouros respondiam.
“Isto dizendo, os barcos vão remando para a frota, que o mouro ver deseja; vão as naus uma e uma rodeando, porque de todas tudo note e veja (1). Mas para o céu Vulcano fuzilando, a frota c’oas bombardas o festeja, e as trombetas canoras lhe tangiam; c’osanafis os mouros respondiam (2).”
(1) Tendo dito estas palavras, os botes que se encontraram no meio do caminho seguem em direção à frota lusitana, para que assim o rei de Melinde possa ver as naus que tanto deseja conhecer; uma a uma eles circundam com os botes, o fazendo ver e notar tudo o que queria.
(2) A frota festeja a chegada do monarca fuzilando o céu com as bombardas de Vulcano e com sonorosas trombetas, sendo que os mouros, em resposta a esta recepção, também sopram suas trombetas (anafis).
“Concluídas as apresentações, os botem seguem para as naus portuguesas que o rei de Melinde desejava tanto conhecer, sendo que eles contornam uma a uma para que o monarca visse tudo. A frota lusitana celebrada a sua chegada, disparando com suas bombardas e tocando suas trombetas enquanto os mouros, em resposta, sopram o seus anafis.”
CANTO II – ESTROFE 107
Mas depois de ser tudo já notado
Do generoso mouro, que pasmava,
Ouvindo o instrumento inusitado,
Que tamanho terror em si mostrava,
Mandava estar quieto e ancorado
N’água o batel ligeiro que os levava,
Por falar de vagar c’o forte Gama
Nas cousas de que tem notícia e fama.
“Mas depois de ser tudo já notado do generoso mouro, que pasmava, ouvindo o instrumento inusitado, que tamanho terror em si mostrava (1), mandava estar quieto e ancorado n’água o batel ligeiro que os levava, por falar de vagar c’o forte Gama nas cousas de que tem notícia e fama (2).”
(1) O generoso rei de Melinde fica impressionado com as naus e também fica assustado ao ouvir os inusitados e aterrorizantes disparos das bombardas.
(2) Ele ordena que os rápidos botes parem de navegar e se ancorassem ao lado das naus, pois agora gostaria de conversar com o capitão Vasco da Gama sobre os famosos portugueses que tanto ouviu falar.
“Depois de já ter visto as grandes naus portuguesas e ficar muito assustado com os disparos das bombardas que, para ele, eram instrumentos desconhecidos, o rei mouro manda que o bote que o transportava parasse de remar, para que assim ele possa falar com o grande capitão Vasco da Gama sobre as notícias que ele ouviu.”
CANTO II – ESTROFE 108
Em práticas o mouro diferentes
Se deleita, pergunta agora
Pelas guerras famosas e excelentes
C’o o povo havidas, que a Mafoma adora;
Agora lhe pergunta pelas gentes
De toda a Hispéria última, onde mora;
Agora pelos povos seus vizinhos,
Agora pelos últimos caminhos.
“Em práticas o mouro diferentes se deleita, pergunta agora pelas guerras famosas e excelentesc’o o povo havidas, que a Mafoma adora (1); agora lhe pergunta pelas gentes de toda a Hispéria última, onde mora; agora pelos povos seus vizinhos; agora pelos úmidos caminhos (2).”
(1) Já tendo visto as naus que tanto desejava conhecer, agora o rei mouro se deleita com outros assuntos, perguntando sobre as famosas guerras que os portugueses travaram contra os adoradores de Maomé (Mafoma).
(2) Também pergunta sobre os povos que habitam a Península Hispânica – onde moram os portugueses, sobre os povos vizinhos de Portugal e sobre os mares (úmidos caminhos) que eles percorreram para chegar até Melinde.
“Já satisfeito em ver a armada dos lusíadas, agora o rei de Melinde satisfazia sua curiosidade perguntando sobre as grandes batalhas que os portugueses travaram com os mouros, sobre os povos que habitam a Península Hispânica e os seus arredores, assim como pergunta sobre os caminhos que eles percorrem com suas nauas para chegar até essas terras.”
CANTO II – ESTROFE 109
“Mas antes, valeroso capitão,
Nos conta”, (lhe dizia), “diligente,
Da terra tua o clima, e região
Do mundo onde morais distintamente;
E assi de vossa antiga geração,
E o princípio do reino tão potente,
C’os sucessos das guerras do começo,
Que, sem sabê-las, sei que são de preço.
“Mas antes, valeroso capitão, nos conta”, (lhe dizia), “diligente, da terra tua o clima, e região do mundo onde morais distintamente (1); e assi de vossa antiga geração, e o princípio do reino tão potente, c’os sucessos das guerras do começo, que, sem sabê-las, sei que são de preço (2).”
(1) O rei de Melinde pede para que Vasco da Gama comece falando sobre a terra de onde ele e sua tripulação vieram, contado como é o clima e a região de Portugal.
(2) Também quer que comece falando sobre os seus antepassados, a história de fundação de Portugal e as primeiras guerras que venceram. Diz que, mesmo sem conhecer essas batalhas, sabe que devem ter sido importantes.
“Mas antes, valoroso capitão Vasco da Gama, fale para nós, da forma mais breve possível, sobre como é o clima da sua terra e em que lugar do mundo ela fica. Também conte sobre os povos que antecederam o seu e a história de fundação do seu reino, as primeiras guerras bem-sucedidas. Pergunto porque, embora não conheça, eu sei que tem muito valor.”
CANTO II – ESTROFE 110
“E assim também nos conta dos rodeios
Longos, em que te traz o mar irado,
Vendo os costumes bárbaros alheios
Que a nossa África ruda tem criado.
Conta: que agora vêm c’os áureos freios
Os cavalos que o carro marchetado
Do novo Sol, da fria aurora trazem,
O vento dorme, o mar e as ondas jazem.
“E assim também nos conta dos rodeios longos, em que te traz o mar irado, vendo os costumes bárbaros alheios que a nossa África ruda tem criado (1). Conta: que agora vêm c’os áureos freios os cavalos que o carro marchetado do novo Sol, da fria aurora trazem, o vento dorme, o mar e as ondas jazem (2).”
(1) Continuando o seu pedido, diz que quer saber sobre os eventos que viram ao percorrer o irado mar, já que Vasco da Gama e sua tripulação passaram pelos povos bárbaros da África para chegar em Melinde.
(2) Pede para que Vasco da Gama comece a contar tudo isso agora que amanhece, com Febo trazendo em sua carruagem dourado puxada por cavalos um novo dia vindo da fria Aurora¹.
“E também nos conte sobre as notícias que longas viagens que trouxe do irado mar, já que viu os costumes bárbaros que as diversas terras africanas têm criado. Comece logo a contar, pois Febo vem nos trazendo um novo dia.
¹Febo (Apolo) é a divindade que representa o Sol, enquanto Aurora é a deusa do amanhecer. Camões os cita para dizer que ainda está amanhecendo em Melinde, sendo que o rei pede para que Vasco da Gama aproveite que amanhece para passar todo o dia contando a história de Portugal.
CANTO II – ESTROFE 111
“E não menos c’o tempo se parece
O desejo de ouvir-te o que contares;
Que quem há, que por fama não conhece
As obras portuguesas singulares?
Não tanto desviado resplandece
De nós o claro sol, para julgares
Que os melindanos têm tão rudo peito,
Que não estimem muito um grande feito.
“E não menos c’o tempo se parece o desejo de ouvir-te o que contares; que quem há, que por fama não conhece as obras portuguesas singulares? (1) Não tanto desviado resplandece de nós o claro sol, para julgares que os melindanos têm tão rudo peito, que não estimem muito um grande feito (2).”
(1) Diz que o desejo que ele tem de saber sobre essas coitas é tão grande quanto o tempo, tanto que questiona se há alguém que não ouviu falar dos grandes feitos portugueses.
(2) Comenta que o Sol não está tão longe de Melinde para que Vasco da Gama acredite que o este povo africano seja bárbaro como os demais outros e não aprecie o relato de feitos tão grandiosos.
“O desejo que tenho de te ouvir falar sobre as histórias de Portugal não é menor que o tamanho do tempo pois, afinal, existe alguém que não conheça as grandes obras realizadas pelo povo português? Digo que não está tão longe da civilização para julgar que o povo de Melinde é tão grosseiro ao ponto de não valorizar um grande feito.”
CANTO II – ESTROFE 112
“Cometeram soberbos os Gigantes,
Com guerra vã, o Olimpo claro e puro;
Tentou Píritoo e Teseu, de ignorantes,
O reino de Plutão, horrendo e escuro.
Se houve feitos no mundo tão possantes,
Não menos é o trabalho ilustre e duro,
Quanto foi cometer Inferno e Céu,
Que outrem cometa a fúria de Nereu.
“Cometeram soberbos os gigantes, com guerra vã, o Olimpo claro e puro; tentou Píritoo e Teseu, de ignorantes, o reino de Plutão, horrendo e escuro (1). Se houve feitos no mundo tão possantes, não menos é o trabalho ilustre e duro, quanto foi cometer Inferno e Céu, que outrem cometa a fúria de Nereu (2).”
(1) Querendo dizer que acredita nos grandes feitos portugueses, o rei de Melinde menciona feitos extraordinários registrados na mitologia antiga. Diz que os Titãs (gigantes) já ousaram enfrentar os deuses do Olimpo numa guerra e que Pírito e Teseu tentaram assaltar o horrendo e escuro reino de Plutão².
(2) Diz que como já houve feitos tão impressionantes no passado, vide estes dos que tentaram invadir o Céu e o Inferno, não seriam impossível que alguém tentasse enfrentar os furiosos mares de Nereu².
“Se no mundo já tentaram grandes feitos, como os Titãs que tentaram invadir o Olimpo, ou como Píritoo e Teseu que tentaram assaltar o horrendo e escuro reino de Plutão, não seria impossível que os bravos portugueses tentassem enfrentar os furiosos mares de Nereu.”
¹Píritoo e Teseu foram heróis mitológicos que tentaram invadir o reino de Plutão, deus romano da Morte e do Submundo (Inferno).
²Nereu, na mitologia, é o deus dos mares.
CANTO II – ESTROFE 113
“Queimou o sagrado templo de Diana,
Do sutil Tesifônio fabricado,
Heróstrato, por ser da gente humana
Conhecido no mundo e nomeado:
Se também com tais obras nos engana
O desejo de um nome avantajado,
Mais razão há que queira eterna glória
Quem faz obras tão dignas de memória.”
“Queimou o sagrado templo de Diana, do sutil Tesifônio fabricado,Heróstrato, por ser da gente humana conhecido no mundo e nomeado (1): se também com tais obras nos engana o desejo de um nome avantajado, mais razão há que queira eterna glória quem faz obras tão dignas de memória.”
(1) Continuado a mencionar os ousados feitos do passado, cita quando Heróstrato queimou o templo de Diana feito por Tesifônio apenas para que seu nome fosse conhecido no mundo todo.
(2) Diz que se alguns homens fazem coisas ruins apenas para que sejam conhecidos, correto está quem queria a terna glória ao fazer obras que sejam dignas de permanecer na memória.
“Se houveram aqueles que desejaram possa ser nomes imortalizados com terríveis feitos – vide Heróstrato, que incendiou o sagrado templo que Tesifônio construiu para Diana – correto estão aqueles que, como os portugueses, queiram a eterna glória realizando obras que sejam realmente dignas de memória.”
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Os Lusíadas (Edição Didática) – Volume I
Obra completa de Camões com notas e comentários de Francisco de Sales Lencastre, sendo a melhor edição para quem busca compreender todos os detalhes deste grande épico.

Os Lusíadas (Edição Didática) – Volume II
Obra completa de Camões com notas e comentários de Francisco de Sales Lencastre, sendo a melhor edição para quem busca compreender todos os detalhes deste grande épico.
Esses foram os nossos comentários sobre a nonagésima segunda até a centésima décima terceira estrofe do segundo canto de Os Lusíadas, onde Camões canta o encontro do rei de Melinde com o capitão Vasco da Gama e o desejo do monarca de conhecer mais sobre Portugal.
Eu sou Caio Motta e convido você a continuar acompanhando os nossos comentários sobre a grande obra de Camões, bem como demais textos da grande literatura universal presentes no nosso blog.