Neste nosso décimo sétimo comentário sobre Os Lusíadas, continuaremos a ler o segundo canto da obra, onde Camões canta a intervenção da deusa Vênus para impedir que os portugueses caíssem na armadilha dos mouros em Mombaça.

CANTO II – ESTROFE 17
Na terra cautamente aparelhavam
Armas e munições que, como vissem
Que no rio os navios ancoravam,
Neles ousadamente se subissem;
E nesta traição determinavam
Que os Luso de todo destruíssem,
E que incautos pagassem deste jeito
O mal que em Moçambique tinham feito.
“Na terra cautamente aparelhavam armas e munições que, como vissem que no rio os navios ancoravam, neles ousadamente se subissem (1); e nesta traição determinavam que os Luso de todo destruíssem, e que incautos pagassem deste jeito o mal que em Moçambique tinham feito (2).”
(1) Enquanto alguns mouros ajudavam os portugueses a manobrar as nauas para atracar em Mombaça, outros já estavam em terra preparando armas e munições para invadir as embarcações quando elas atracassem.
(2) Nesta armadilha, desejam pegar os portugueses (os de Luso) desprevenidos e então mata-los, fazendo com que eles pagassem pelo mal que tinham feito em Moçambique.
“Na terra os mouros de Mombaça preparavam cautelosamente as suas armas e munições para que, assim que vissem os portugueses atracando no porto, subissem em seus navios e os destruíssem. Essa era a sua armadilha, sendo ela a vingança pelos mouros que foram derrotados em Moçambique.”
CANTO II – ESTROFE 18
As âncoras tenaces vão levando
Com a náutica grita acostumada;
Da proa as velas sós ao vento dando,
Inclinam para barra abalizada.
Mas a linda Ericina, que guardando
Andava sempre a gente assinalada,
Vendo a cilada grande, e tão secreta,
Voa do céu ao mar como uma seta.
“As âncoras tenaces vão levando com a náutica grita acostumada; da proa as velas sós ao vento dando, inclinam para barra abalizada (1). Mas a linda Ericina, que guardando andava sempre a gente assinalada, vendo a cilada grande, e tão secreta, voa do céu ao mar como uma seta (2).”
(1) Enquanto cantavam, os marinheiros levantam as tenazes ancoras e dão vento as velas, fazendo assim as naus seguirem em frente até a barra do porto em direção à armadilha.
(2) A deusa Vênus (Ericina¹), que sempre protegeu os portugueses, voa do céu ao mar como uma flecha ao ver a grande armadilha que os aguardavam.
“Enquanto cantam, os marinheiros portugueses vão levantado as tenazes âncoras e dando ao vento as velas da proa que inclinam para a abalizada barra do porto de Mombaça. Porém a linda Vênus, que sempre está protegendo os ilustres lusitanos, ao ver que eles iam em direção à uma grande e secreta emboscada, voa do céu ao mar como uma flecha.”
¹Ericina é um dos nomes de Vênus, já que ela era adorada em Erice (Sicília).
CANTO II – ESTROFE 19
Convoca as alvas filhas de Nereu,
Com toda a mais cerúlea companhia,
Que, porque no salgado mar nasceu,
Das águas o poder lhe obedecia.
E propondo-lhe a causa a que desceu,
Com todas juntamente se partia,
Para estorvar que a armada não chegasse
Aonde para sempre se acabasse.
“Convoca as alvas filhas de Nereu, com toda a mais cerúlea companhia, que, porque no salgado mar nasceu, das águas o poder lhe obedecia (1). E propondo-lhe a causa a que desceu, com todas juntamente se partia, para estorvar que a armada não chegasse aonde para sempre se acabasse (2).”
(1) Para salvar os portugueses, Vênus convoca as ninfas nereidas, filhas do deus Nereu, para formar uma companhia marítima (cerúlea) e lhe ajudar, já que, como a deusa nasceu das águas salgadas do mar, as águas lhe obedeciam.
(2) Ela explica o motivo de sua descia ao mar e então parte com todas elas para impedir que a armada portuguesa caísse naquela armadilha.
“Vênus, por ter nascido do mar e ter poder sobre as águas, convoca as ninfas filhas de Nereu e, explicando-lhes que precisa salvar os portugueses de uma embosca, parte com elas numa companhia para impedir que armada chegasse ao seu fim.”
CANTO II – ESTROFE 20
Já na água erguendo vão, com grande pressa,
Com as argênteas caudas branca espuma;
Cloto c’om o peito corta e atravessa
Com mais furor o mar do que costuma.
Salta Nise, Nerine se arremessa
Por cima da água crespa, em força suma.
Abrem caminho as ondas encurvadas
De temor das Nereidas apressadas.
“Já na água erguendo vão, com grande pressa, com as argênteas caudas branca espuma; Cloto c’om o peito corta e atravessa com mais furor o mar do que costuma (1). Salta Nise, Nerine se arremessa por cima da água crespa, em força suma. Abrem caminho as ondas encurvadas de temor das Nereidas apressadas (2).”
(1) As ninfas vão com muita pressa para onde estava a frota portuguesa, erguendo a espuma das águas prateadas (argênteas) com suas caudas. A ninfa Cloto corta e atravessa o mar com mais vontade do que de costume.
(2) Enquanto as ninfas Nise e Nerine saltam e se arremessam por cima da água com muita força, sendo assim a forma que as apressadas ninfas nereidas abrem caminho pelo mar.
“As ninfas atravessam as águas com suas prateadas caudas brancas com muita pressa. Cloto corta e atravessa com seu peito o mar com mais furor do que de costume, enquanto Nise salta e Nirine se arremessa com força sobre a água crespa. Assim como ondas abrem caminho temendo a pressa das filhas de Nereu.”
CANTO II – ESTROFE 21
Nos ombros de um Tritão, com gesto aceso,
Vai a linda Dione furiosa;
Não sente quem a leva o doce peso,
De soberbo com carga tão fermosa.
Já chegam perto donde o vento teso
Enche as velas da frota belicosa;
Repartem-se e rodeiam nesse instante
As naus ligeiras, que iam por diante.
“Nos ombros de um Tritão, com gesto aceso, vai a linda Dione furiosa; não sente quem a leva o doce peso, de soberbo com carga tão fermosa (1). Já chegam perto donde o vento teso enche as velas da frota belicosa; repartem-se e rodeiam nesse instante as naus ligeiras, que iam por diante (2).”
(1) Mostrando um aspecto aceso e furioso, a linda Vênus vai nos ombros de um tritão¹, este que nem sente o doce peso desta carga tão formosa.
(2) Então cheguem todas perto de onde estava a frota portuguesa, sendo que elas se dividem e circundam as rápidas naus que estavam entrando em Mombaça.
“A linda Vênus ia com um aspecto furioso nos ombros de um Tritão, este que não sentia seu peso por ela ser uma carga tão fermosa. Vênus e as ninfas filhas de Nereu já chegavam perto dos ventos que sopravam as naus da belicosa gente portuguesa, com elas repartindo-se e circundando os navios.
¹Tritão era uma criatura mitológica que era metade homem e metade peixe.
CANTO II – ESTROFE 22
Põem-se a deusa com outras em direito
Da proa capitaina, e ali fechando
O caminho da barra, estão de jeito,
Que em vão assopra o vento, a vela inchada.
Põem no madeiro duro o brando peito,
Para detrás a forte nau forçando;
Outras em derredor levando-a estavam,
E da barra inimiga a desviavam.
“Põem-se a deusa com outras em direito da proa capitaina, e ali fechando o caminho da barra, estão de jeito, que em vão assopra o vento, a vela inchada (1). Põem no madeiro duro o brando peito, para detrás a forte nau forçando; outras em derredor levando-a estavam, e da barra inimiga a desviavam (2).”
(1) Junto com as ninfas, a deusa Vênus coloca-se ao lado direito da proa da capitania¹ portuguesa, fechando o caminho da barra da cidade e impedindo que o vento conduzisse a embarcação.
(2) Algumas delas forçam o barco contra o vento, enquanto outras o fazem rodar e desviar do caminho que levava ao porto.
“Põem-se a deusa junto com as nereidas ao lado direito da proa da capitania portuguesa, impedindo que os ventos que sopram suas velas a levem até a barra da cidade. Algumas fazem força empurrando a embarcação para trás e as outras rotacionam o navio, desviando do porto inimigo de Mombaça.”
¹Capitania é o nome dado a principal embarcação de uma frota, sendo ela a embarcação que se encontra o capitão Vasco da Gama.
CANTO II – ESTROFE 23
Quais para a cova as providas formigas,
Levando o peso grande e acomodado,
As forças exerciam, de inimigas
Do inimigo inverno congelado;
Ali são seus trabalhos e fadigas,
Ali mostram vigor nunca esperado:
Tais andavam as ninfas estorvando
À gente portuguesa o fim nefando.
“Quais para a cova as providas formigas, levando o peso grande e acomodado, as forças exerciam, de inimigas do inimigo inverno congelado (1); ali são seus trabalhos e fadigas, ali mostram vigor nunca esperado: tais andavam as ninfas estorvando à gente portuguesa o fim nefando (2).”
(1) Camões compara o esforço físico das ninfas com formigas que, querendo evitar o congelante inverno, se esforçam muito carregando os pesados alimentos.
(2) As ninfas mostram um vigor nunca antes visto ao evitarem que a frota portuguesa chegasse ao seu fim.
“Assim como as formigas que com grande esforço carregam seus mantimentos para os seus celeiros antes de chegar o congelante inverno, as nereidas, com um vigor e esforço nunca esperado, carregam as naus portuguesas, impedindo que cheguem ao seu perverso fim.”
CANTO II – ESTROFE 24
Torna para detrás a nau forçada,
Apesar dos que leva, que gritando
Mareiam vela; ferve a gente irada,
O leme a um bordo e a outro atravessando;
O mestre astuto em vão a popa brada,
Vendo como diante ameaçando
Os estava um marítimo penedo,
Que de quebrar-lhe a nau lhe mete medo.
“Torna para detrás a nau forçada, apesar dos que leva, que gritando mareiam vela; ferve a gente irada, o leme a um bordo e a outro atravessando (1); o mestre astuto em vão a popa brada, vendo como diante ameaçando os estava um marítimo penedo, que de quebrar-lhe a nau lhe mete medo (2).”
(1) Apesar do esforço dos portugueses de tentar levar as naus para o porto de Mombaça, as embarcações voltam para trás, deixando os marinheiros irados por perderem o seu controle.
(2) O mestre das embarcações em vão gritava na popa do barco, pois via que a embarcação estava se aproximando de um recife e, caso colidisse, iria afundar.
“Contra a vontade dos tripulantes e dos mouros, que aos gritos tentavam manobrar as velas e o leve do navio, as ninfas forçavam a embarcação para trás. O mestre na popa em vão brada, temendo que o navio dos portugueses colidisse com um recife próximo e afundasse.
CANTO II – ESTROFE 25
A celeuma medonha se alevanta
No rudo marinheiro que trabalha;
O grande estrondo a maura gente espanta,
Como se vissem hórrida batalha;
Não sabem a razão de fúria tanta,
Não sabem nesta pressa quem lhe valha;
Cuidam que seus enganos são sabidos,
E que hão-de ser aqui punidos.
“A celeuma medonha se alevanta no rudo marinheiro que trabalha; o grande estrondo a maura gente espanta, como se vissem hórrida batalha (1); não sabem a razão de fúria tanta, não sabem nesta pressa quem lhe valha; cuidam que seus enganos são sabidos, e que hão-de ser aqui punidos (2).”
(1) Os marinheiros entoam uma canção (celeuma) enquanto se esforçam para recuperar o controle de suas naus. O barulho é tão estrondoso que assusta os mouros, como se eles vissem uma horrível batalha.
(2) Como não sabem o motivo da fúria dos portugueses, os mouros temem que sua armadilha tenha sido descoberta e que eles acabem sendo punidos.
“Os marinheiros cantam furiosos enquanto tentam recuperar o controle de seu navio, entoando uma celeuma assustadora. Os mouros acabam assustados como se vissem uma horrível batalha e, não entendendo o que está acontecendo, temem que sua armadilha tenha sido descoberta e que eles podem ser punidos.”
CANTO II – ESTROFE 26
Ei-los subitamente se lançavam
A seus batéis veloces que traziam;
Outros em cima o mar alevantavam,
Saltando na água, a nado se acolhiam;
De um bordo e doutro súbito saltavam,
Que o medo os compelia do que viam;
Que antes querem ao mar aventurar-se
Que nas mãos inimigas entregar-se.
“Ei-los subitamente se lançavam a seus batéis veloces que traziam; outros em cima o mar alevantavam, saltando na água, a nado se acolhiam (1); de um bordo e doutro súbito saltavam, que o medo os compelia do que viam; que antes querem ao mar aventurar-se que nas mãos inimigas entregar-se (2).”
(1) Acreditando que foram descobertos, os mouros fogem das naus portuguesas, com uns pulando em seus botes (batéis), enquanto outros saltam diretamente no mar.
(2) Fogem saltando de todos os lados do navio, pois o medo era tanto que preferiam se aventurar no mar do que enfrentar os portugueses em combate.
“Com medo, os mouros fogem do navio pulando nos botes que traziam e até mesmo se jogando em direção ao mar. De um lado e de outro do navio eles saltavam, tendo eles menos medo do mar do que medo das mãos dos portugueses.”
CANTO II – ESTROFE 27
Assi como em selvática alagoa
As rãs, no tempo antigo lícia gente,
Se sentem por ventura vir pessoa,
Estando fora da água incautamente,
Daqui e dali saltando (o charco soa),
Por fugir do perigo que se sente,
E acolhendo-se ao couto que conhecem,
Sós as cabeças na água lhe aparecem:
“Assi como em selvática alagoa as rãs, no tempo antigo lícia gente, se sentem por ventura vir pessoa, estando fora da água incautamente (1), daqui e dali saltando (o charco soa), por fugir do perigo que se sente, e acolhendo-se ao couto que conhecem, sós as cabeças na água lhe aparecem (2).”
(1) Camões compara a fuga dos mouros com rãs que pulam de medo. Assim como no tempo da antiga Lícia¹, as rãs ficam assustadas quando não estão em sua lagoa e veem alguém se aproximando.
(2) Começam a saltar daqui e dali e fogem para se esconder em algum abrigo (couto), deixando apenas as suas cabeças fora d’água.
¹Lícia é uma região da Ásia menor que, segundo a lenda, o seu povo foi transformado me rãs como castigo por turvar o lago que a mãe de Apolo se banhava.
“Assim como rãs que habitam as lagoas ermas, estas que, ao estarem fora da água e veem vir uma pessoa, começam a pular daqui para ali fugindo do perigo até encontrar um abrigo onde deixem apenas a cabeça fora da água.”
CANTO II – ESTROFE 28
Assim fogem os mouros; e o piloto,
Que ao perigo grande as naus guiara,
Crendo que seu engano estava noto,
Também fode, saltando na água amara.
Mas, por não darem no penedo imoto,
Onde percam a vida doce e cara,
A âncora solta logo a capitaina,
Qualquer das outras junto dela amaina.
“Assim fogem os mouros; e o piloto, que ao perigo grande as naus guiara, crendo que seu engano estava noto, também fode, saltando na água amara (1). Mas, por não darem no penedo imoto, onde percam a vida doce e cara, a âncora solta logo a capitaina, qualquer das outras junto dela amaina (2).”
(1) Assim, como rãs com medo, os mouros de Mombaça fugiam das naus portuguesas se lançam ao mar e aos seus botes. O piloto de Moçambique, este que estava servindo de guia e que pretendia destruir a frota portuguesa, também foge das naus pulando na água, pois acreditava que sua armadilha tinha sido descoberta.
(2) Como não queriam que a nau batesse no recife e perdessem suas vidas num naufrágio, os portugueses soltam a âncora da capitania e das demais embarcações.
“E como rãs, assim fugiram os mouros de Mombaça. O piloto de Moçambique, aquele guiara as naus até esta grande armadilha, agora pensa que seu plano foi descoberto e também foge da embarcação saltando na água. Os portugueses, para não deixarem que a capitania colidisse com o imoto rochedo e assim ceifasse suas vidas, lançam a ancora da nau ao mar, sendo que o mesmo foi feito pelas demais.”

Os Lusíadas (Edição Didática) – Volume I
Obra completa de Camões com notas e comentários de Francisco de Sales Lencastre, sendo a melhor edição para quem busca compreender todos os detalhes deste grande épico.

Os Lusíadas (Edição Didática) – Volume II
Obra completa de Camões com notas e comentários de Francisco de Sales Lencastre, sendo a melhor edição para quem busca compreender todos os detalhes deste grande épico.
Esses foram os nossos comentários sobre décima sétima até a oitava nona estrofe do segundo canto de Os Lusíadas, onde Camões canta a intervenção da deusa Vênus para impedir que os portugueses caíssem na armadilha dos mouros em Mombaça.
Eu sou Caio Motta e convido você a continuar acompanhando os nossos comentários sobre a grande obra de Camões, bem como demais textos da grande literatura universal presentes no nosso blog.