Neste nosso vigésimo sétimo comentário sobre Os Lusíadas, continuaremos a ler o terceiro canto da obra, onde Camões canta a história de formação de Portugal feita pelo capitão Vasco da Gama.

CANTO III – ESTROFE 20
Eis aqui, quase cume da cabeça
Da Europa toda, o reino lusitano;
Onde a terra se acaba e o mar começa,
E onde Febo repousa no oceano.
Este quis o céu justo que floresça
Nas armas contra o torpe Mauritano,
Deitando-o de si fora; e lá na ardente
África estar quieto o não consente.
“Eis aqui, quase cume da cabeça da Europa toda, o reino lusitano; onde a terra se acaba e o mar começa, e onde Febo repousa no oceano (1). Este quis o céu justo que floresça nas armas contra o torpe Mauritano, deitando-o de si fora; e lá na ardente África estar quieto o não consente (2).”
(1) Continuando a contar a história de Portugal para o rei de Melinde, Vasco da Gama agora começa a contar a sua localização no mapa e formação da nação portuguesa. Começa dizendo que o reino lusitano fica quase no cume da cabeça do Europa, sendo ali onde as terras deste continente acabam e começa o mar que o Sol (Febo) desce para descansar¹.
(2) Diz que foi Deus (céu justo) quem quis que o reino português fosse bem sucedido (florescesse) ao lutar contra os torpes muçulmanos (mauritano²) e os expulsar da Europa, sendo que os portugueses também os enfrentaram nas ardentes terras da África.
“E, na parte Oriental do continente europeu, encontramos o glorioso reino de Portugal que, quando acaba a terra, começa o grande mar, onde o Sol desce para descansar no oceano. Quis o justo Céu que este reino fosse bem sucedido em suas guerras contra os torpes muçulmanos, expulsando-os de volta para a Mauritânia e, mesmo nas terras ardentes da África, não os deixando tranquilos.”
¹Febo é a divindade romana que representa o Sol, sendo semelhante ao deus grego Apolo. Camões cita que ele desce no oceano para descansar para indicar a ideia de que as terras de Portugal eram o limite terrestre do lado Oeste do mundo.
²Maritano é o nome que se dava aos muçulmanos africanos, mais precisamente aos norte africanos, já que vinham da Mauritânia, região que corresponde aos territórios da Tunísia, Argélia e do Marrocos. O nome mouro é uma abreviação dessa alcunha.
CANTO III – ESTROFE 21
Está é a ditosa pátria minha amada,
À qual se o céu me dá que eu sem perigo
Torne com esta empresa já acaba,
Acabe-se esta luz ali comigo:
Esta foi Lusitânia, derivada
De Luso ou Lisa, que de Baco antigo
Filhos foram, parece, ou companheiros,
E nela estão os íncolas primeiro.
“Está é a ditosa pátria minha amada, à qual se o céu me dá que eu sem perigo torne com esta empresa já acaba, acabe-se esta luz ali comigo (1): esta foi Lusitânia, derivada de Luso ou Lisa, que de Baco antigo filhos foram, parece, ou companheiros, e nela estão os íncolas primeiro (2).”
(1) Vasco da Gama diz que Portugal é a sua amada e bem quista pátria e que poderá morrer feliz se Deus (céu) permitir que ele conclua a sua perigosa jornada rumo ao Oriente e volte para casa.
(2) Após mostrar a localização de Portugal na Europa, Vasco da Gama agora começa a narrar a história de sua formação. Começa dizendo que as terras de Portugal eram conhecidas no passado como Lusitânia, uma palavra que deriva do nome Luso ou Lisa, este que parece que foram filhos ou amantes do deus Baco e os primeiros habitantes deste lugar.
“E o reino de Portugal é a minha pátria amada, tanto que digo que, se o Céu permitir que eu conclua essa empreitada rumo às terras do Oriente e retorne para casa, já posso morrer feliz por ter prestado tal serviço. Nos tempos passados, essas terras eram conhecidas como Lusitânia, palavra que deriva de Luso ou Lisa, que, aparentemente, eram filhos ou companheiros de Baco, sendo os primeiros habitantes.”
CANTO III – ESTROFE 22
Desta o Pastor nasceu, que no seu nome
Se vê que de homem forte os feitos teve;
Cuja fama ninguém vira que dome,
Pois a grande de Roma não se atreve.
Esta, o velho que os filhos próprios come
Por decreto do Céu, ligeiro e leve,
Veio a fazer no mundo tanta parte,
Criando-a o reino ilustre. E foi destarte:
“Desta o Pastor nasceu, que no seu nome se vê que de homem forte os feitos teve; cuja fama ninguém vira que dome, pois a grande de Roma não se atreve (1). Esta, o velho que os filhos próprios come por decreto do Céu, ligeiro e leve, veio a fazer no mundo tanta parte, criando-a o reino ilustre (2). E foi destarte”
(1) Comenta que, no passado, nestas terras nasceu Viriato, um pastor que, como se pode perceber pelo nome, foi um homem que ficou conhecido por seus feitos e por sua força, tanto que não pôde ser conquistado por ninguém, nem mesmo pela grande Roma.
(2) Diz que o deus Saturno, aquele que devora os seus próprios filhos, foi quem decretou a criação desta parte imensa do mundo, sendo assim criado o ilustre reino de Portugal.
“Desta terra nasceu Viriato, o pastor que, como diz seu próprio nome, teve os feitos de um homem forte e cuja força ninguém subjugou, nem mesmo a grande Roma. Saturno, o velho deus que devorava os seus próprios filhos, por decreto do Céu fez esta parte imensa do mundo, criando este ilustre reino.”
CANTO III – ESTROFE 23
“Um rei, por nome Afonso, foi na Espanha,
Que fez aos sarracenos tanta guerra,
Que por armas sanguinas, força e manha,
A muito fez perder a vida e a terra;
Voando deste rei a fama estranha
Do herculano Calpe à cáspia Serra,
Muitos, para na guerra esclarecer-se,
Vinham a ele e à morte oferecer-se.
“Um rei, por nome Afonso, foi na Espanha, que fez aos sarracenos tanta guerra, que por armas sanguinas, força e manha, a muito fez perder a vida e a terra (1); Voando deste rei a fama estranha do herculano Calpe à cáspia Serra, muitos, para na guerra esclarecer-se, vinham a ele e à morte oferecer-se (2).”
(1) Após comentar sobre os antigos ancestrais portugueses, Vasco da Gama começa a contar sobre a linhagem de sucessão dos reis cristãos de Portugal. Começa mencionando o rei espanhol Afonso VI, que guerreou contra os sarracenos e, graças a sua força e capacidade, derrotou muitos inimigos e conquistou muitos territórios.
(2) Diz que esse monarca ficou muito conhecido no seu tempo, com sua fama se estendendo desde as Colunas de Hércules até as águas do mar Cáspio. Por causa dessas bem-sucedidas batalhas, muitos cristãos estrangeiros vinham até o rei Afonso se oferecer para participar de suas guerras e morrer lutando contra os muçulmanos.
“Na Espanha ficou conhecido o rei Afonso VI, que lutou inúmeras guerras contra os mouros e, graças à sua força e capacidade, derrotou muitos inimigos e conquistou muitos territórios. Tamanha era a fama deste rei, esta que se estendia das Colunas de Hercules até o mar Cáspio, que muitos cristãos estrangeiros vinham até ele se oferecer para participar das suas guerras e morrer lutando contra os mouros.”
CANTO III – ESTROFE 24
“E com amor intrínseco acendidos
Da Fé, mais que das honras populares,
Eram de várias terras conduzidos,
Deixando a pátria amada e próprios lares.
Depois que em feitos altos e subidos
Se mostraram nas armas singulares,
Quis o famoso Afonso que obras tais
Levassem prêmio digno e dons iguais.
“E com amor intrínseco acendidos da Fé, mais que das honras populares, eram de várias terras conduzidos, deixando a pátria amada e próprios lares (1). Depois que em feitos altos e subidos se mostraram nas armas singulares, quis o famoso Afonso que obras tais levassem prêmio digno e dons iguais (2).”
(1) Diz que, por estarem com seu amor pela Fé acendido e desejando se sacrificarem mais pela religião do que por meras honras, esses cristãos vinham de várias terras para se alistar ao exército do rei Afonso, deixando a pátria amada e seus próprios lares para trás.
(2) Depois que esses bravos guerreiros se provavam em batalhas com ações nobres e notáveis, o famoso rei Afonso os recompensava com prêmios e doações.
“E, com o fervor pela Fé estando mais aceso do que o desejo de glória, esses cristãos estrangeiros vinham de várias terras para o exército do rei Afonso, deixando para trás a pátria amada e seus próprios lares. Depois que eles se provavam em batalhas com ações nobres e notáveis, o monarca os recompensava com prêmios e doações dignos de tais atos.”
CANTO III – ESTROFE 25
“Destes Anrique, dizem que segundo
Filho de um rei de Hungria experimentado,
Portugal houve em sorte, que no mundo
Então não era ilustre nem prezado;
E, para mais sinal de amor profundo,
Quis o rei castelhano que casado
Com Teresa, sua filha, o conde fosse;
E com ela das terras tomou posse.
“Destes Henrique, dizem que segundo filho de um rei de Hungria experimentado, Portugal houve em sorte, que no mundo então não era ilustre nem prezado (1); e, para mais sinal de amor profundo, quis o rei castelhano que casado com Teresa, sua filha, o conde fosse; e com ela das terras tomou posse (2).”
(1) Destes guerreiros que foram recompensando, cita o conde Henrique de Borgonha, que diziam que era filho do rei da Hungria. Ele teve sorte em lutar nas terras do então condado de Portugal, território este que, na época, não era tão ilustre e prezado.
(2) O rei Afonso ficou tão impressionado com os feitos de Henrique que, desejando mostrar seu profundo amor, o casou com sua filha Teresa e o nomeou conde de Portugal, para que assim herdasse as terras portuguesas.
“Destes estrangeiros cristãos que lutaram pelo rei Afonso, o conde Henrique de Borgonha, que dizem ser filho de um rei da Hungria, se mostrou um guerreiro muito capaz ao lutar no território de Portugal; na época, estas terras ainda não eram importantes. E, por sinal um sinal de grande amor, o rei Afonso quis que ele se casa-se com sua filha Teresa, herdando as terras portuguesas.”
CANTO III – ESTROFE 26
“Este, depois quis contra os descendentes
Da escrava Agar vitórias grandes teve,
Ganhando muitas terras adjacentes,
Fazendo o que seu forte peito deve,
Em prêmio destes feitos excelentes,
Deu-lhe o supremo Deus, em tempo breve,
Um filho, que ilustrasse o nome ufano
Do belicoso rei lusitano.
“Este, depois quis contra os descendentesa escrava Agar vitórias grandes teve, ganhando muitas terras adjacentes (1), fazendo o que seu forte peito deve, em prêmio destes feitos excelentes, deu-lhe o supremo Deus, em tempo breve, um filho, que ilustrasse o nome ufano do belicoso rei lusitano (2).”
(1) Diz que o conde Henrique obteve grandes vitórias contra os mouros (descendentes da escrava Agar), conquistando muitos dos territórios que estavam adjacentes ao condado de Portugal.
(2) Em recompensa por esses feitos, Deus pouco tempo depois lhe deu um filho, este que iria carregar o ilustre nome dos belicosos monarcas portugueses.
“E o conde Henrique obteve grandes vitórias contra os mouros, ganhando muitos territórios adjacentes ao domínio português. A Divina Providência, recompensando-o por seus feitos excelentes, pouco tempo depois lhe deu filho que iria ilustrar o orgulhoso nome do belicoso monarca português.”
CANTO III – ESTROFE 27
Já tinha vindo Henrique da conquista
Da cidade de Hierosólima sagrada,
E do Jordão a areia tinha vista,
Que viu de Deus a carne em si lavada:
Que não tendo Gotfredo a quem resista,
Depois de ter Judeia sojugada,
Muitos, que nestas guerras ajudaram,
Para seus senhorios se tornaram.
“Já tinha vindo Henrique da conquista da cidade de Hierosólima sagrada, e do Jordão a areia tinha vista, que viu de Deus a carne em si lavada (1): que não tendo Gotfredo a quem resista, depois de ter Judeia sojugada, muitos, que nestas guerras ajudaram, para seus senhorios se tornaram (2).”
(1) Diz que o conde Henrique participou da Primeira Cruzada, onde os guerreiros cristãos conquistaram Jerusalém (Hierosílima), e que nesta região ele também viu as areias do Jordão, o rio onde Jesus foi batizado.
(2) Comenta que após o rei Godofredo de Bulhão ter subjugado a Judéia, os guerreiros cristãos que participaram da cruzada retornaram para suas terras.
“Henrique já tinha retornado da conquista da cidade sagrada de Jerusalém, além de ter visto as areias do Jordão, rio que foi lavada a própria carne de Deus. Não tendo Godofredo, comandante da primeira cruzada, nenhum adversário após conquistar a Judéia, os cavaleiros que participaram da guerra retornaram para suas terras.”
CANTO III – ESTROFE 28
Quando, chegado ao fim de sua idade
O forte e famoso húngaro estremado,
Forçado da fatal necessidade,
O espirito deu a quem lho tinha dado,
Ficava o filho em tenra mocidade,
Em quem o pai deixava seu translado,
Que do mundo os mais fortes igualava:
Que de tal pai tal filho se esperava.
“Quando, chegado ao fim de sua idade o forte e famoso húngaro estremado, forçado da fatal necessidade (1), o espirito deu a quem lho tinha dado, ficava o filho em tenra mocidade, em quem o pai deixava seu translado, que do mundo os mais fortes igualava: que de tal pai tal filho se esperava (2).”
(1) Diz que o forte e famoso conde Henrique (húngaro) chegou ao fim de sua idade e veio a falecer.
(2) O conde Henrique deixou seu filho como herdeiro, este que, apesar da pouca idade, possuía o mesmo aspecto e caráter do pai que se igualava aos dos homens mais forte do mundo, o que já se esperava por ser seu filho.
“Quando o forte e famoso Henrique chegou ao fim de sua idade e veio a falecer, seu filho, Afonso Henrique, apesar de ainda ser muito jovem, ficou como ser herdeiro. Ele possuía o mesmo aspecto e caráter do pai, se igualando aos homens mais fortes do mundo, o que era esperado por ser herdeiro de tal pessoa.”
CANTO III – ESTROFE 29
Mas o velho rumo (não sei se errado,
Que em tanta antiguidade não há certeza)
Conta que a mãe, tomando todo o estado,
Do segundo himeneu não se despreza:
O filho órfão deixava deserdado,
Dizendo que nas terras a grandeza
Do senhorio todo só sua era,
Porque para casar seu pai lhas dera.
“Mas o velho rumo (não sei se errado, que em tanta antiguidade não há certeza) conta que a mãe, tomando todo o estado, do segundo himeneu não se despreza (1): o filho órfão deixava deserdado, dizendo que nas terras a grandeza do senhorio todo só sua era, porque para casar seu pai lhas dera (2).”
(1) Diz que, segundo os antigos e incertos relatos (rumo), dona Teresa, mãe de Afonso Henriques, teria se apossado das terras de Portugal após se casar (himeneu¹) pela segunda vez.
(2) Ao fazer isso, ela deserda seu próprio filho ao alegar que as terras de Portugal sempre foram suas, já que foram dadas para ela por seu pai, o rei espanhol Afonso VII, quando se casou pela primeira vez.
“Mas o rumo contado, que não podemos ter certeza já que é tão velho, conta que a dona Teresa, mãe de Afonso Henrique, teria se apossado de todo o estado e, casando uma segunda vez, teria deserdado seu filho, afirmando que as terras de Portugal eram suas, já que as recebera de seu pai ao casar com Henrique.”
¹ Na mitologia, Himeneu é o deus que presidia os casamentos, sendo seu nome um sinônimo de matrimônio.
CANTO III – ESTROFE 30
Mas o príncipe Afonso (que destarte
Se chamava, do avô tomando o nome),
Vendo-se em suas terras não ter parte,
Que a mãe com seu marido as manda e come
Fervendo-lhe no peito o duro Marte
Imagina consigo como as tome.
Revolvidas as causas no conceito,
Ao propósito firme segue o efeito.
“Mas o príncipe Afonso (que destarte se chamava, do avô tomando o nome), vendo-se em suas terras não ter parte, que a mãe com seu marido as manda e come fervendo-lhe no peito o duro Marte imagina consigo como as tome (1). Revolvidas as causas no conceito, ao propósito firme segue o efeito (2).”
(1) Diz que o príncipe Afonso (que assumiu o nome de seu avô), logo que percebeu que não seria senhor das terras de Portugal porque sua mãe e seu padrasto a tomaram, começa a preparar uma ofensiva militar para reavê-las.
(2) Ele, já tendo pensado sobre o que fazer, parte para colocar sua ofensiva em ação.
“Mas o príncipe Afonso, que assumiu o nome de seu avô, ao perceber que não seria senhor de suas terras, já que sua mãe e padrasto as governavam e desfrutavam, começa a planejar uma ofensiva militar para recupera-las. Tendo pensado muito no que fazer, partiu para ação.”
CANTO III – ESTROFE 31
“De Guimaraes o campo se tingia
C’o sangue próprio da intestina guerra,
Onde a mãe, que tão pouco o parecia,
A seu filho negava o amor e a terra.
C’o ele posta em campo já se via;
E não vê a soberba muito que erra
Contra Deus, contra o maternal amor;
Mas nela o sensual era maior.
“De Guimaraes o campo se tingia c’o sangue próprio da intestina guerra, onde a mãe, que tão pouco o parecia, a seu filho negava o amor e a terra (1). C’o ele posta em campo já se via; E não vê a soberba muito que erra contra Deus, contra o maternal amor; mas nela o sensual era maior (2).”
(1) Diz que os campos de Guimarães ficaram tingidos com as marcas da guerra de d. Teresa e de Afonso Henriques, a quem ela negava não só seu amor materno, como também a herança das terras de Portugal.
(2) D. Teresa não via o quão soberba era ao se colocar contra seu filho e contra Deus, já que estava tomada pela paixão que tinha por seu amante.
“O campo de Guimaraes ficou tingido com as marcas da guerra de d. Teresa e seu filho, Afonso Henrique, a quem ela negava o amor e as terras do Condado de Portugal. A mãe já estava em campo contra seu filho e ela, sendo soberba, não via que ia contra Deus e o amor maternal, já que o amor dela por seu amante era muito maior.”
CANTO III – ESTROFE 32
“Ó Progne crua! Ó mágica Medéia!
Se os vossos próprios filhos vos vingais
Da maldade dos pais, da culpa alheia,
Olhai, que ainda Teresa peca mais.
Incontingência má, cobiça feia,
São as causas deste erro principais:
Cila, por uma, mata o velho pai;
Esta, por ambas, contra o filho vai.
“Ó Progne crua! Ó mágica Medéia! Se os vossos próprios filhos vos vingais da maldade dos pais, da culpa alheia, olhai, que ainda Teresa peca mais (1). Incontingência má, cobiça feia, são as causas deste erro principais: Cila, por uma, mata o velho pai; esta, por ambas, contra o filho vai (2).”
(1) Pelo modo como d. Teresa tratou seu próprio filho, ela é comparada a Progne e Medéia¹. Diz que elas duas se vingaram de seus maridos matando os seus próprios filhos, mas que não pecaram tanto quanto Teresa agora faz.
(2) Comenta que a desonestidade e ambição que levaram Teresa aos seus erros. Lembra que Cila matou seu próprio pai por causa de sua desonestidade, sendo que Teresa, por causa de sua desonestidade e também por sua ambição, vai contra o próprio filho.
“Ó Cruel Progne! Ó mágica Madéia! Vocês, que se vingaram de seus maridos matando os seus próprios filhos, olhem para Teresa, esta que peca ainda mais. Desonestidade e ambição são as causas dos erros de Teresa. Cila, por exemplo, matou seu pai por causa da desonestidade; a mãe de Afonso, vai contra o próprio filho por esses dois erros.”
¹ Progne, na mitologia, foi a mulher do rei Teseu, sendo ela conhecida por se vingar do marido matando o filho Ítis e dando-o para o marido comer; Medéia, na mitologia, foi uma feiticeira que auxiliou o herói Jasão na busca pelo Velocino de Ouro, mas, ao ser abandonada por Jasão, se vingou estrangulando os filhos que tive com o herói.
CANTO III – ESTROFE 33
“Mas já o príncipe claro o vencimento
Do padrasto e da iniqua mãe levava;
Já lhe obedece a terra num momento,
Que o primeiro contra ele pelejava.
Porém, vencido de ira o entendimento,
A mãe em ferros ásperos atava;
Mas de Deus foi vingada em tempo breve:
Tanta veneração aos pais se deve!
“Mas já o príncipe claro o vencimento do padrasto e da iniqua mãe levava; já lhe obedece a terra num momento, que o primeiro contra ele pelejava (1). Porém, vencido de ira o entendimento, a mãe em ferros ásperos atava; mas de Deus foi vingada em tempo breve: tanta veneração aos pais se deve! (2)”
(1) Diz que o príncipe Afonso venceu a guerra que travou contra sua iníqua mãe e seu padrasto, ficando com o controle das terras portuguesas que estavam sob o domínio deles.
(2) Acontece que o príncipe Afonso, estando tomado pela ira, aprisiona sua mãe, fato este que faz com que Deus venha a castigá-lo no futuro, já que, mesmo nestes casos conflituosos, os filhos devem respeito aos seus pais.
“Mas o príncipe Afonso venceu a guerra contra sua mãe Teresa e seu padrasto e as terras portuguesas, que antes estavam contra ele, agora ficam sob seu domínio. Estando tomado pela iria, o príncipe prendeu sua mãe com algemas, embora Deus fosse vinga-la posteriormente, já que os filhos sempre devem respeito aos pais.”
CANTO III – ESTROFE 34
“Eis se ajunta o soberano castelhano,
Para vingar a injúria de Teresa,
Contra o tão raro em gente Lusitano,
A quem nenhum trabalho agrava ou pesa.
Em batalha cruel, o peito humano,
Ajudado da angélica defesa,
Não só contra tal fúria se sustenta,
Mas o inimigo aspérrimo afugenta.
“Eis se ajunta o soberano castelhano, para vingar a injúria de Teresa, contra o tão raro em gente Lusitano, a quem nenhum trabalho agrava ou pesa (1). Em batalha cruel, o peito humano, ajudado da angélica defesa, não só contra tal fúria se sustenta, mas o inimigo aspérrimo afugenta (2).”
(1) Diz que após esses conflitos, o soberbo rei Afonso VII de Castela veio vingar a injuriada Teresa, com o castelhano indo lutar contra o príncipe lusitano.
(2) Acontece que o príncipe Afonso, mesmo com poucos homens, luta esta batalha com coragem e sob a proteção de Deus, tanto que não só aguenta a ofensiva, como repele os inimigos.
“Para vingar a injuria que Afonso Henrique fez ao acorrentar Teresa, o soberbo rei Afonso VII de Castela se voltou contra o príncipe lusitano. Acontece que ele, mesmo com poucos soldados, tinha um bravo coração e auxílio angelical, e assim não só resistiu a investida, como afugentou o inimigo.”
CANTO III – ESTROFE 35
“Não passa muito tempo, quando o forte
Príncipe em Guimarães está cercado
De infinito poder, que desta sorte
Foi refazer-se o imigo magoado.
Mas, com se oferecer à dura morte
O fiel Egas amo, foi livrado;
Que de outra arte pudera ser perdido,
Segundo estava mal apercebido.
“Não passa muito tempo, quando o forte príncipe em Guimarães está cercado de infinito poder, que desta sorte foi refazer-se o imigo magoado (1). Mas, com se oferecer à dura morte o fiel Egas amo, foi livrado; que de outra arte pudera ser perdido, segundo estava mal apercebido (2).”
(1) Diz que após ter fracassado em seu ataque anterior, o rei Afonso VII faz uma nova investida e consegue cercar o forte príncipe Afonso Henriques com um grande exército em Guimarães.
(2) Acontece que Egas Moniz, o fiel fidalgo do príncipe, se ofereceu como refém para livrar seu amo da morte. Caso não fizesse isso, Afonso Henriques seria esmagado pela grande força de Afonso VII.
“Pouco tempo depois desta batalha o príncipe Afonso Henrique acabou cercado por grandes forças militares em Guimarães, já que o inimigo que foi derrotado reorganizou suas forças. Mas, ao oferecer Egas Moniz, seu fiel fidalgo, para livrar-se da morte, caso o contrário, o próprio príncipe seria esmagado pela grande força militar de Afonso VII.”
CANTO III – ESTROFE 36
“Mas o leal vassalo, conhecendo
Que seu senhor não tinha resistência,
Se vai ao Castelhano, prometendo
Que ele faria dar-lhe obediência.
Levanta o inimigo o cerco horrendo,
Fiado na promessa e consciência
De Egas Moniz; mas não consente o peito
Do moço ilustre a outrem ser sujeito.
“Mas o leal vassalo, conhecendo que seu senhor não tinha resistência, se vai ao Castelhano, prometendo que ele faria dar-lhe obediência (1). Levanta o inimigo o cerco horrendo, fiado na promessa e consciência de Egas Moniz; mas não consente o peito do moço ilustre a outrem ser sujeito (2).”
(1) É relatado que esse caso aconteceu pois Egas Moniz, sendo um vassalo muito leal, viu que seu senhor não tinha como enfrentar o grande exército do rei Afonso VII e foi até o monarca castelhano dizendo que Afonso Henriques se renderia.
(2) Acreditando nas palavras do confiável Egas Moniz, Afonso VII levanta seu cerco. Acontece que o príncipe português, por não desejar ser vassalo de outro rei, não cumpre o acordo.
“Mas Egas Moniz, sendo um leal vassalo do príncipe e vendo que seu senhor não conseguiria resistir, vai até Afonso VII prometendo que Afonso Henrique se renderia. Acreditando no que diz Egas Moniz, o monarca de Castela levanta o cerco horrendo; o príncipe, por outro lado, não desejava ser vassalo de outra pessoa.”
CANTO III – ESTROFE 37
“Chegado tinha o prazo prometido,
Em que o rei castelhano já aguardava
Que o príncipe, a seu mando sumetido,
Lhe desse a obediência que esperava.
Vendo Egas que ficava fementido,
O que dele Castela não cuidava,
Determina de dar a doce vida
A troco da palavra mal cumprida.
“Chegado tinha o prazo prometido, em que o rei castelhano já aguardava que o príncipe, a seu mando sumetido, lhe desse a obediência que esperava (1). Vendo Egas que ficava fementido, o que dele Castela não cuidava, determina de dar a doce vida a troco da palavra mal cumprida (2).”
(1) Passa o tempo e chega o prazo para que o príncipe Henrique se submetesse ao rei Afonso VII e se tornasse o seu vassalo.
(2) Vendo que o príncipe não cumpriria o acordo e se renderia, Egas Moniz decide que sua própria vida fosse tomada, já que a acordo que ele foi mediador não foi cumprido.
“Tinha já chegado a prazo prometido em que o príncipe Henrique se submeteria ao Afonso VII e passasse a ser seu vassalo, mas, Egas Moniz, ao ver que o príncipe não se renderia, determina que sua vida fosse tirada, já que sua promessa não foi cumprida.”
CANTO III – ESTROFE 38
E com seus filhos e mulher se parte
A alevantar com eles a fiança;
Descalços e despidos, de tal arte
Que mais move a piedade que a vingança:
“Se pretender, rei alto, de vingar-te
De minha temerária confiança,
(Dizia) eis aqui venho oferecido
A te pagar c’o a vida o prometido.
E com seus filhos e mulher se parte a alevantar com eles a fiança; descalços e despidos, de tal arte que mais move a piedade que a vingança (1): “Se pretender, rei alto, de vingar-te de minha temerária confiança, (Dizia) eis aqui venho oferecido a te pagar c’o a vida o prometido (2).”
(1) Diz que como desejava se entregar a morte, Egas Moniz parte despido e descalço com sua esposa e filhos até o rei Afonso VII, sendo que tal ato demonstrava mais piedade do que desejo de vingança.
(1) Diante do monarca castelhano, Egas diz que se o rei pretende se vingar do príncipe Afonso pela quebra do acordo, que tome sua vida.
“E, estando despidos e descalços de uma forma que despertavam mais piedade do que vingança, Egas Moniz parte com sua esposa e filhos de Portugal até Castela. Diante do Afonso VII, dizia: “Se pretende, grande rei, se vingar de temerária confiança, aqui estou para pagar com a vida o que eu prometi.”
CANTO III – ESTROFE 39
“Vês, aqui trago as vidas inocentes
Dos filhos sem pecado e da consorte,
Se os peitos generosos e excelentes,
Dos fracos satisfaz a fera morte.
Vês aqui as mãos e a língua delinquentes:
Nelas sós exp’rimenta toda sorte
De tormentos, de mortes, pelo estilo
De Sínis, e do touro Perilo.”
“Vês, aqui trago as vidas inocentes dos filhos sem pecado e da consorte, se os peitos generosos e excelentes, dos fracos satisfaz a fera morte (1). Vês aqui as mãos e a língua delinquentes: nelas sós exp’rimenta toda sorte de tormentos, de mortes, pelo estilo de Sínis, e do touro Perilo (2).”
(1) Egas mostra para o rei Afonso VII sua esposa e seus filhos, eles que não passam de vidas inocentes que não possuem nenhum pecado; diz que os oferece ao monarca para satisfazer o seu desejo de vingança.
(2) Apesar de os oferecer, Egas pede para que o monarca apenas o castigue, já que tudo o que aconteceu se deve a sua promessa. Compara os sofrimentos que causou aos das vítimas de Sínis e Perilo¹.
“Veja que aqui trago as vidas inocentes dos meus filhos sem pecado e da minha esposa, se a cruel morte dos fracos satisfazer a sua vontade. Veja que trago as minhas mãos e a língua delinquente, sendo que nelas experimentara toda a sorte de mortes e tormentos, semelhante das mortes das vítimas de Sínis e de Perilo”
¹ Sínis foi um criminoso grego conhecido por suas torturas; Perilo foi um inventor sádico que criou um touro de bronze oco onde eram colocadas pessoas vivias para serem queimadas.
CANTO III – ESTROFE 40
Qual diante do algoz o condenado,
Que já na vida a morte tem bebido,
Põem no cepo a garganta, e já entregado
Espera pelo golpe tão temido:
Tal, diante do príncipe indignado,
Egas estava, a tudo oferecido;
Mas o rei, vendo a estranha lealdade,
Mais pôde enfim que a ira a piedade.
“Qual diante do algoz o condenado, que já na vida a morte tem bebido, põem no cepo a garganta, e já entregado espera pelo golpe tão temido: tal, diante do príncipe indignado, Egas estava, a tudo oferecido (1); mas o rei, vendo a estranha lealdade, mais pôde enfim que a ira a piedade (2).”
(1) Compara Egas Monis a um criminoso que, estando diante do seu algoz, coloca a garganta no cepo por já ter aceito a própria condenação, esperando o golpe fatal da morte.
(2) Acontece que rei Afonso VII, vendo tamanho ato de lealdade por parte de Egas Moniz, começa a perder o desejo de vingança e sente apenas piedade.
“Assim como o condenado que, diante do algoz, já aceitou que vai para a morte e coloca a sua garganta no cepo para receber o golpe fatal, tal era o sentimento de Egas Moniz que estava diante do rei Afonso VII. Mas o monarca, ao ver tamanha lealdade, sente sua irá enfraquecer, tomando lugar a piedade.”
CANTO III – ESTROFE 41
Ó grã fidelidade portuguesa,
De vassalos que a tanto se obrigava!
Que mais o Persa fez naquela empresa,
Onde o rosto e narizes se cortava?
Do que ao grande Dario tanto pesa
Que, mil vezes dizendo, suspirava,
Que mais o seu Zopiro são prezava,
Que vinte Babilônias que tomava.
“Ó grã fidelidade portuguesa, de vassalos que a tanto se obrigava! Que mais o Persa fez naquela empresa, onde o rosto e narizes se cortava? (1) Do que ao grande Dario tanto pesa que, mil vezes dizendo, suspirava, que mais o seu Zopiro são prezava, que vinte Babilônias que tomava (2).”
(1) Camões louva a grande lealdade dos vassalos, comparando quando o persa Zópiro cortou o próprio nariz e rosto para enganar seus inimigos.
(2) Comenta que quando Zópiro fez tal ato, o grande Dario disse que preferia que mil vezes ver seu vassalo não mutilado do que tomar vinte Babilônias.
“Ó grande fidelidade portuguesa de vassalo que tanto se obrigava! Que maior feito de lealdade do que aquele onde o persa Zópiro cortou o próprio rosto e nariz? De qual façanha pesou mais para Dario que mil vezes dizia preferir ver Zópiro não mutilado do que tomar vinte Babilônias.”
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Os Lusíadas (Edição Didática) – Volume I
Obra completa de Camões com notas e comentários de Francisco de Sales Lencastre, sendo a melhor edição para quem busca compreender todos os detalhes deste grande épico.

Os Lusíadas (Edição Didática) – Volume II
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Esses foram os nossos comentários sobre a vigésima até quadragésima primeira estrofe do terceiro canto de Os Lusíadas, onde Camões canta a história de formação de Portugal feita pelo capitão Vasco da Gama.
Eu sou Caio Motta e convido você a continuar acompanhando os nossos comentários sobre a grande obra de Camões, bem como demais textos da grande literatura universal presentes no nosso blog.