Neste nosso sétimo comentário sobre Os Lusíadas, continuaremos lendo o primeiro canto da obra, onde Camões canta o encontro dos portugueses com os mouros de Moçambique.

Lusíadas Os mouros de Moçambique
Os mouros de Moçambique

CANTO I – ESTROFE 46

 

As embarcações eram, na maneira,

Mui veloces, estreitas e compridas:

As velas, com que vêm, era de esteira

De umas folhas de palma, bem tecidas;

A gente da cor era verdadeira,

Que Faeton, nas terras acendidas,

Ao mundo deu, de ousado, e não prudente:

O Pado o sabe, a Lampetusa o sente.

 

“As embarcações eram, na maneira, mui veloces, estreitas e compridas: as velas, com que vêm, era de esteira de umas folhas de palma, bem tecidas (1); a gente da cor era verdadeira, que Faeton, nas terras acendidas, ao mundo deu, de ousado, e não prudente: o Pado o sabe, a Lampetusa o sente (2).”

(1) Camões canta que as embarcações que vinham das ilhas de Moçambique se aproximavam da frota portuguesa. Descreve que essas canoas, por serem estreitas e compridas, eram muito velozes e que as suas velas eram esteiras tecidas de folhas de palma;

(2) os tripulantes eram negros. Camões, ao se referir a cor dos negros, diz que eles ficaram assim por causa de imprudência de Faeton¹, pois ele se aproximou demais daquelas terras com a carruagem de fogo de Apolo e as queimou. Esse evento é muito bem lembrado pelo rio Pado² e por Lampetusa³, irmã de Faeton.

 

“As embarcações, sendo muito estreitas e compridas, eram muito velozes e tinham velas de esteiras de folhas de palma tecidas. A gente que vinha era da cor queimada por Faeton que, por sua imprudência, queimou as terras que passou; esse fato é conhecido pelo Pado e ainda é sentido por Lampetusa.”

 

¹Faeton foi um personagem que pegou a carruagem de Apolo e, ao se aproximar muito das terras africana, deixou-as queimadas, sendo essa uma alusão à cor negra dos povos de Moçambique;

² Pado é o rio que Faeton caiu quando conduzia a carruagem;

³ Lampetuda é uma das irmãs de Faeton que sofreu muito com o castigo mortal que seu irmão recebeu de Júpiter pelo ocorrido.

CANTO I – ESTROFE  47

 

De panos de algodão vinham vestidos,

De várias cores, brancos e listrados:

Uns trazem derredor de si cingidos,

Outros de modo airoso sobraçados:

Da cinta pra cima vêm despidos;

Por armas de adargas e terçados;

Com toucas na cabeça; e navegando,

Anafis sonorosos vão tocando.

 

“De panos de algodão vinham vestidos, de várias cores, brancos e listrados: uns trazem derredor de si cingidos, outros de modo airoso sobraçados (1): da cinta pra cima vêm despidos; por armas de adargas e terçados; com toucas na cabeça; e navegando, anafis sonorosos vão tocando.”

(1) Os negros africanos vinham vestidos com panos de algodão listrados de branco e de várias cores. Eles utilizavam suas vestimentas de forma diferente, com alguns deles usando os panos pendurados na cintura (cingidos), enquanto outros usam sobre um dos ombros e debaixo do outro ombro (sobraçados);

(2) vinham sem nenhuma cobertura acima da cintura, embora estivessem armados com adargas (escudo ogival) e com terçados (espada) e utilizassem turbantes nas cabeças. Ao se aproximarem das naus portuguesas, tocavam anafis (trombeta)

 

“Tripulantes vinham vestidos de panos de algodão branco ou listrados de várias cores: alguns com eles cingidos na cintura e outros sobraçados, sendo que vinham despidos da cinta para cima. Por armas tinham adargas e terçados e vestiam toucas na cabeça. Quando navegavam, tocavam sonoros anafis.”

CANTO I – ESTROFE  48

 

C’os panos e c’os braços acenavam

Às gentes lusitanas, que esperassem;

Mas já as proas ligeiras se inclinavam,

Para que junto às ilhas amainassem.

A gente e marinheiros trabalhavam,

Como se aqui os trabalhos se acabassem;

Tomam velas; amaina-se a verga alta

Da âncora, o mar ferido, em cima salta.

 

“C’os panos e c’os braços acenavam às gentes lusitanas, que esperassem; mas já as proas ligeiras se inclinavam, para que junto às ilhas amainassem (1). A gente e marinheiros trabalhavam, como se aqui os trabalhos se acabassem; tomam velas; amaina-se a verga alta da âncora, o mar ferido, em cima salta (2).”

(1) Os negros africanos acenavam com panos e com seus braços para que os portugueses esperassem eles os alcançar. Já se aproximavam das naus para leva-las até as ilhas;

(2) juntos, os portugueses e os negros trabalhavam juntos para levar o navio até as ilhas. Recolhiam as velas e soltavam a âncora no mar.

 

“Os marinheiros acenavam aos portugueses com os panos e os braços, querendo que esperassem. Estando juntos, eles trabalhavam com todo esforço para amainar os navios, como se a viagem estivesse para acabar.”

CANTO I – ESTROFE 49

 

Não eram ancorados, quando a gente

Estranha pelas cordas já subia.

No gesto ledos vêm, e humanamente

O capitão sublime os recebia:

As mesas manda pôr em continente;

Do licor que Lieu prantado havia

Enchem vasos de vidro, e do que deitam,

Os de Faeton queimados nada enjeitam.

 

“Não eram ancorados, quando a gente estranha pelas cordas já subia. No gesto ledos vêm, e humanamente o capitão sublime os recebia: as mesas manda pôr em continente (1); do licor que Lieu prantado havia enchem vasos de vidro, e do que deitam, os de Faeton queimados nada enjeitam (2).”

(1) As embarcações portuguesas nem estavam ancoradas quando os estranhos negros vinham subindo pelas cordas e abordando na frota portuguesa. Eles vinham com um aspecto alegre, fazendo com que o sublime capitão Vasco da Gama os recebesse com carinho e mandando que colocassem mesas para eles;

(2) Os negros, que eram assim por terem sido queimados por Faeton, bebiam todo o licor de Lieu (Baco) que estava sendo servido nos jarros.

 

“Nem estavam ancorados e os estranhos já subiam no navio pelas cordas. Vinham alegres, sendo recebidos pelo capitão de forma carinhosa, tanto que mandou servir mesas aos visitantes. Ao serem enchidos os vasos com o licor de Lieu, os negros bebiam sem deixar uma gota.”

CANTO I – ESTROFE 50

 

Comendo alegremente perguntavam,

Pela arábica língua, donde vinham,

Quem eram, de que terra, que buscavam,

Ou que partes do mar corrido tinham?

Os fortes lusitanos lhe tornavam

As discretas respostas, que convinham:

“Os portugueses somos do Ocidente,

Imos buscando as terras do Oriente.

 

“Comendo alegremente perguntavam, pela arábica língua, donde vinham, quem eram, de que terra, que buscavam, ou que partes do mar corrido tinham? (1) Os fortes lusitanos lhe tornavam as discretas respostas, que convinham: “Os portugueses somos do Ocidente, imos buscando as terras do Oriente (2).”

(1) Enquanto comiam com toda a alegria, os visitantes, falando em sua língua árabe, perguntavam aos portugueses de onde eles vinham, quem eram, de que terra vinham, o que buscavam por aqui e que caminhos tinham navegado;

(2) os portugueses, querendo ser o mais discretos possível, apenas diziam que eram portugueses vindos do Ocidente e que buscavam alcançar as terras do Oriente.

 

“Enquanto comiam alegremente, os visitantes perguntavam com sua língua arábica de onde vinham os visitantes portugueses, que eles eram, o que buscavam e que partes do mar tinha percorrido. Os bravos lusitanos respondiam de forma discreta dizendo: somo portugueses do Ocidente buscando ir para as terras do Oriente.”

 

¹ Calisto, na mitologia grega, foi uma mulher que, por se relacionar com Zeus, foi amaldiçoada por sua esposa, Hera, e transformada em ursa; Zeus, se apiedando dela, colocou-a no céu, dando origem a constelação conhecida como Ursa Maior.

CANTO I – ESTROFE 51

 

“Do mar temos corrido e navegado

Toda a parte do Antártico e Calisto,

Toda a costa africana rodeado,

Diversos céus e terras temos vistos;

Dum rei potente somos, tão amado,

Tão querido de todos, e benquisto,

Que não no largo mar, com leda fronte,

Mas no lago entraremos de Aqueronte.

 

“Do mar temos corrido e navegado toda a parte do Antártico e Calisto, toda a costa africana rodeado, diversos céus e terras temos vistos (1); dum rei potente somos, tão amado, tão querido de todos, e benquisto, que não no largo mar, com leda fronte, mas no lago entraremos de Aqueronte (2).

(1) Os portugueses, continuando a responder os questionamentos dos negros africanos, diziam que vieram navegando pelo Mar do Norte (Antártico) e pelo Mar do Sul (Calisto) e contornando toda a costa africana. A viagem tem sido tão extensa que eles já viram diversos céus e conheceram novas terras;

(2) dizem ser vassalos de um que rei que, por ser tão amado e querido, eles não somente se lançariam alegremente no mar aberto, como também entrariam no rio Aqueronte¹.

 

“Navegamos por toda a parte do Antártico e Calisto, rodeando toda a costa africana e vendo diversos céus e terras; somo vassalos de um rei potente, tão amado, tão querido de todos, e benquisto, que não no largo mar entraríamos, com a feição alegre, mas entraríamos no lago Aqueronte.”

 

¹ Aqueronte, na mitologia grega, é um rio que leva ao mundo dos mortos.

CANTO I – ESTROFE 52

 

“E por mandado seu, buscando andamos

A terra oriental que o Indo rega;

Por ele, o mar remoto navegamos,

Que só dos feios focas se navega.

Mas já razão parece que saibamos,

Se entre vós a verdade não se nega,

Quem sois, que terra é esta que habitais,

Ou se tende da Índia alguns sinais?”

 

“E por mandado seu, buscando andamos a terra oriental que o Indo rega; por ele, o mar remoto navegamos, que só dos feios focas se navega (1). Mas já razão parece que saibamos, se entre vós a verdade não se nega, quem sois, que terra é esta que habitais, ou se tende da Índia alguns sinais? (2)

(1) Os marinheiros portugueses terminam de responder os questionamentos dos negros dizendo que, por seguirem as ordens de seu rei, se lançaram nesta empreitada para alcançar as terras orientais que são regas pelas águas do rio Indo. Pelo rei de Portugal, eles navegam até nas distantes águas que somente as feitas focas¹ nadavam;

(2) então os portugueses fazem os seus questionamentos aos negros, perguntando quem eram eles, que terras (ilhas) eram essas que habitavam e se eles têm algum sinal (caminho) sobre as terras da Índia.

 

“E por ordem sua, andamos buscando a terra oriental regada pelo Indo; por ele, o mar remoto nós navegamos, mesmo que somente seja nadado por feios focas. Mas já é momento que nos revelem – se entre vós não mintam – quem sois? Que terra é esta que habitais? Tende alguns sinais da Índia?”

 

¹ Focas eram os nomes que antigamente eram dados aos grandes monstros marinheiros, no caso, feias baleias. 

CANTO I – ESTROFE 53

 

Somos, (um dos das ilhas lhe tornou),

Estrangeiros na terra, lei e nação;

Que os próprios são aqueles, que criou

A Natura sem lei e sem razão.

Nós temos a lei certa, que ensinou

O claro descendente de Abraão

Que agora tem do mundo o senhorio,

A mãe hebreia teve e o pai gentio.

 

“Somos, (um dos das ilhas lhe tornou), estrangeiros na terra, lei e nação; que os próprios são aqueles, que criou a Natura sem lei e sem razão (1). Nós temos a lei certa, que ensinou o claro descendente de Abraão que agora tem do mundo o senhorio, a mãe hebreia teve e o pai gentio (2).”

(1) Um dos negros africanos respondeu dizendo que eles, apesar de habitarem aquelas ilhas, eram estrangeiros, pois vieram de outras terras e seguiam outra religião. Os nativos destas ilhas eram bárbaros selvagens que não seguiam a fé verdadeira;

(2) o negro diz que ele e seus companheiros, por outro lado, seguiam a religião (lei) do profeta Maomé, o ilustre descendente de Abraão que é filho de mãe hebreia e filho de pai pagão e que agora domina todo o mundo.

 

“Disse um dos visitantes da ilha: nós somos estrangeiros nesta terra, não seguimos a religião e nem pertencemos a esta nação. Os nativos daqui não seguem a fé, são apenas selvagens. Nós, por outro lado, pertencemos a verdadeira religião, aquela ensinada pela claro descendente de Abrão que agora é senhorio de todo o mundo, aquele que teve mãe hebreia e pai gentio.”

CANTO I – ESTROFE 54

 

Está ilha pequena, que habitamos

É, em toda está terra certa escala

De todos os que as ondas navegamos

De Quíloa, de Mombaça e de Sofala;

E, por ser necessária, procuramos,

Como próprios da terra, de habitá-la;

E porque tudo enfim nos notifique,

Chama-se a pequena ilha Moçambique.

 

“Está ilha pequena, que habitamos é, em toda está terra certa escala de todos os que as ondas navegamos de Quíloa, de Mombaça e de Sofala; e, por ser necessária, procuramos, como próprios da terra, de habitá-la (1); e porque tudo enfim nos notifique, chama-se a pequena ilha Moçambique (2).”

(1) O negro diz que essa ilha é uma escala marítima (porto de abastecimento) para aqueles que navegam em Quíloa, Mombaça e Sofala. Por causa disso que eles as habitam como seus soberanos;

(2) terminando de responder as dúvidas dos portugueses, dize que a ilha se chama Moçambique.

 

“Está pequena ilha que habitamos é escala de todo nós que navegamos de Quíloa, Mombaça e Sofala; por ser uma escala importante, nós a habitamos como senhores. E para que assim fique conhecido, chamamos esta pequena ilha é chamada de Moçambique”

CANTO I – ESTROFE 55

 

E já que de tão longe navegais,

Buscando o indo Hidaspe e a terra ardente,

Piloto aqui tereis, por que sejais

Guiados pelas ondas sabiamente.

Também será bem feito que tenhais

Da terra algum refresco, e que o regente,

Que esta terra governa, que vos veja

E do mais necessário vos proveja.

 

“E já que de tão longe navegais, buscando o indo Hidaspe e a terra ardente, piloto aqui tereis, por que sejais guiados pelas ondas sabiamente (1). Também será bem feito que tenhais da terra algum refresco, e que o regente, que esta terra governa, que vos veja e do mais necessário vos proveja (2).”

(1) Como os portugueses vieram de tão longe para alcançar o rio Indo e as ardentes terras do Oriente, o negro diz que eles conseguirão um piloto que os guiará no resto desta viagem;

(2) também diz que serão fornecidos suprimentos (refresco) para eles durante a viagem. Pede para que eles conheçam o regente de Moçambique, pois ele proverá quaisquer outras coisas que eles necessitarem.

 

“Já que de tão longe navais buscando o indo Hidaspe e as terras ardentes do Oriente, então será providenciado um piloto que os guiara sabiamente por estas águas, além de algum refresco para os abastecer. Peço que conheçam o regente que governa as terras de Moçambique para que ele os veja e proveja o que mais for necessário.”

CANTO I – ESTROFE 56

 

Isto dizendo, o mouro se tornou

A seus batéis com toda a companhia;

Do capitão a gente se apartou

Com mostras de devida cortesia.

Nisto Febo nas águas encerrou,

C’om carro de cristal, o claro dia,

Dando cargo à irmã, que alumiasse

O largo mundo, enquanto repousasse.

 

“Isto dizendo, o mouro se tornou a seus batéis com toda a companhia; do capitão a gente se apartou com mostras de devida cortesia (1). Nisto Febo nas águas encerrou, c’om carro de cristal, o claro dia, dando cargo à irmã, que alumiasse o largo mundo, enquanto repousasse (2).”

(1) Após dizer isso, o mouro deixa as naus portuguesas com os demais e volta para as suas canoas, sendo que eles se despedem do capitão e dos marinheiros portugueses com toda a cortesia.

(2) Camões, querendo dizer que o dia se encerrou, fala que o Febo (Sol) encerrou o dia com seu carro e foi repousar nas águas, dando a função de iluminar o largo mundo à Febe (Lua), sua irmã.

 

“Concluindo suas palavras, o mouro retornou aos batéis com toda a companhia, despedindo-se do capitão e da gente com mostras de devida cortesia. Neste momento, Febo, com seu carro de cristal, o claro dia encerrou, dando cargo para que sua irmã que iluminasse o largo mundo enquanto ele repousava.”

 

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Esses foram os nossos comentários sobre a quadragésima sexta até a quinquagésima sexta estrofe do primeiro canto de Os Lusíadas, onde Camões canta o encontro dos lusíadas com os mouros de Moçambique, as trocas que informações que eles fizeram e o pede para que eles conheçam o regente das ilhas.

Eu sou Caio Motta e convido você a continuar acompanhando os nossos comentários sobre a grande obra de Camões, bem como demais textos da grande literatura universal presentes no nosso blog.

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